segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

'Sou muito negra': Lia de Itamaracá volta aos palcos com boleros e cúmbias

A cantora Lia de Itamaracá, 78, retoma os shows presenciais em São Paulo 

A notícia da morte do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe não sai da cabeça da cantora Lia de Itamaracá, 78. O semblante alegre se transforma imediatamente quando o fato é mencionado. "Aquilo me deixou arrasada", disse. "O vídeo dos amigos dele carregando o caixão e cantando me parte o coração." 

Na última sexta-feira (4), a artista pernambucana, ícone da ciranda, posava para fotos no jardim de um hotel em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, quando se fixou no episódio. "É um racismo grande", resumia. "E não é de agora. Também já vivi muita coisa, enfrentei muita dificuldade nessa vida. Mas tô viva, graça a Deus", acrescentou.

Sereia e patrimônio 

Maria Madalena Correia do Nascimento adotou Lia, apelido de infância, como nome artístico e acrescentou a ele a paixão pela terra onde nasceu, cresceu e vive até hoje. Em Itamaracá, ilha do litoral norte de Pernambuco, ela começou a cantar ciranda aos 19 anos, em festas na areia da praia de Jaguaribe. Naquela época também era cozinheira e chegou a trabalhar por quase três décadas em uma escola pública como merendeira, até se aposentar.

Ela ganhou fama como artista somente a partir dos anos 1970, quando gravou seu primeiro disco com uma música que se tornou praticamente um hino a si mesma: "Eu Sou Lia". A letra faz referência a ela como mulher "da beira do mar", "morena, queimada do sal e sol da Ilha de Itamaracá". Não à toa, Lia é quase uma sereia que habita o imaginário popular do estado no qual foi eleita Patrimônio Vivo, título concedido pelo governo em 2005.

Na carreira longeva, no entanto, ela já experimentou altos e baixos. Logo depois de lançar o LP, a cantora passou quase duas décadas no ostracismo. Só retornou aos palcos em 1990, no bojo do movimento mangue beat, ao lado de outros artistas da cultura popular. Em 1998, fez uma das apresentações mais marcantes dessa retomada: subiu ao palco do festival Abril Pro Rock, um dos mais importantes daquele período, para cantar "no meio dos roqueiros". "Menino, me deu um medo. Eu pensei: 'ciranda com essa batucada será que casa, meu Deus?'", lembrou Lia em entrevista em 2012. "Foi tão bom, mas tão bom, que, se eu pudesse, estava lá todo dia. Os roqueiros ficaram doidos. Dançaram, cantaram , bateram palma." 

Além da música, a Rainha da Ciranda — como é conhecida a mulher imponente e carismática, de voz marcante —, encontrou espaço também no cinema. Hoje, ela vive um novo auge  

Artista das telas 

"Meu sonho era me ver na tela do cinema, e eu virei tela de cinema", gargalhava Lia, referindo-se aos trabalhos como atriz. O mais recente papel que interpretou — e também o mais emblemático — foi Dona Carmelita, em "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho: uma espécie de guardiã da cidade na mira de ataques estrangeiros. 

"Lia é essa resistência na cultura. Uma mulher negra que luta há anos pela valorização da ciranda", diz o produtor Beto Ruiz. "É uma cantora que, aos 78 anos, se reinventa. Uma artista da cultura popular que está presente também na cultura pop. Ela é símbolo dessa mulher negra nordestina.

" Memórias dessa resistência foram reunidas em um memorial da cantora, em Itamaracá, a "Embaixada da Ciranda", onde estão figurinos, livros, fotografias e objetos abertos à visitação. Em 20 de abril, uma exposição no Itaú Cultural, na avenida Paulista, vai contar a história de Lia. Ainda no primeiro semestre, ela também estreia outro trabalho como atriz, no elenco de uma série da Netflix gravada em Salvador.

"Ela é incrível! Gostaria de uma participação de Lia em meu show, no Carnegie Hall, em Manhattan, em maio", escreveu um pianista norte-americano, em convite para Lia se apresentar com ele em Nova York. "Estamos nas tratativas, mas não posso revelar o nome dele ainda", adiantou o produtor da cantora, mostrando a troca de mensagens através do Instagram.

Vou cantar uma ciranda 

"Eu brincava tanto com sua ciranda", dizia uma mulher pernambucana, dirigindo-se a Lia de Itamaracá, no jardim do hotel. "É uma satisfação vir pra cá e te encontrar", emendava, pedindo para tirar uma foto. Foram quase dois anos sem contato direto com o público. "Nessa pandemia, senti muita saudade", dizia. "Mas a internet tava aí, né? Aí Lia começou a cantar nas lives. Pronto. Não parei um minuto, trabalhei bastante", contava a cirandeira, que costuma falar na terceira pessoa do singular. Aos poucos, Lia está retomando a agenda interrompida. "Estou vacinada, viu? Me cuidando. Tem que todo mundo se vacinar", explicava. Dois dias antes, havia se apresentado em Salvador, numa celebração a Iemanjá, orixá da qual é devota. 

Em São Paulo, seu primeiro show desde o início da pandemia aconteceu na sexta-feira (4), na Casa Natura Musical. "Salve, Lia", gritava uma mulher da plateia, assim que a artista apareceu no palco. A cantora "muito negra mesmo", como ela diz, apresentava naquela noite o repertório do seu mais recente disco "Ciranda Sem Fim", feito em parceria com DJ Dolores. O álbum, lançado em 2019, leva Lia para outras sonoridades além da ciranda: ela canta boleros e cúmbias, ritmo popular da Colômbia, como quem liga a vitrola em casa para ouvir seus discos preferidos. 

"Ai, mamãe", soltava Lia, sem esconder a alegria da volta. "É muito bom sentir esse carinho das pessoas. Quem não gosta de carinho, né? Sinto muita alegria que me façam esse carinho comigo viva", confessava a cantora, mais cedo. "Lia está viva." 

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