domingo, 20 de fevereiro de 2022

'Educação, educação, educação'

 

A AUTORA PERSEGUIDA DURANTE A DITADURA MILITAR POR APOIAR PAULO FREIRE

Psicóloga que aprendeu com Paulo Freire o método de alfabetização de adultos e foi perseguida pela ditadura publica ensaio com crítica social

A autora (à esq.) e a capa da obra 'O triunfo de Pelágio e o mundo sem a Graça' (2022)
A autora  e a capa da obra 'O triunfo de Pelágio e o mundo sem a Graça' (2022) - Divulgação

Para a psicóloga, psicanalista e escritora Ana Mariza Fontoura Vidal, o mundo assiste ao fracasso ocidental em questões humanitárias básicas. Saúde, educação, emprego, carências comprovadas por índices de desenvolvimento baixíssimos. Um olhar particular desta realidade é apresentado no livro O triunfo de Pelágio e o mundo sem a Graça.

Minha principal motivação é o desejo de compartilhar conhecimentos que adquiri e que vejo como necessários, como fonte de informação para pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades que tive", explica Ana Mariza Fontoura Vidal.

Em 84 páginas, a autora analisa criticamente o ocidente, especialmente o Brasil, além de apresentar uma tese de como a experiência cristã, distinta da religiosidade, pode transformar as pessoas e o mundo em um lugar melhor.

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A capa da obra 

O ensaio se desdobraria inicialmente em um projeto de pesquisa, mas acabou virando livro após a descoberta de um câncer, em 2020. A ela foram dados seis meses de vida, daí a decisão de publicar o livro. Ana queria reverberar o tema que, para ela, não existe sendo discutido, mas sim praticado.








A psicóloga, servidora federal aposentada, também é autora de A beleza última,  escrita como memória a sua família. Na autobiografia, ela registra a experiência política durante os anos de ditadura militar e a sua perspectiva sobre a ética e a política a partir do exercício da fé.

O legado de Paulo Freire

Na adolescência, Ana morou em Recife e conviveu com Paulo Freire, com quem aprendeu a aplicar o método de alfabetização de adultos.

"Com 17 anos e já morando em Recife, comecei a trabalhar no Museu do Açúcar, hoje chamado Museu do Homem do Nordeste e Ariano Suassuna fazia parte do Conselho Cultural do Museu. Não tive com ele tanta aproximação como com Paulo Freire, mas acompanhava suas ideias e sua genialidade. Com Paulo Freire foi diferente, porque ele estava formando pessoas que conhecessem e pudessem aplicar seu método para alfabetização de adultos", explica a autora com exclusividade.

Por conta do apoio voluntário ao educador, foi perseguida pelo regime militar e teve de morar pouco mais de dois anos na França. Ela também foi abrigada em termos políticos pelo então arcebispo Dom Helder Câmara, preso em domicílio.

"Então tive o privilégio de aprender com ele (Paulo Freire) a aplicação do método, que posteriormente ganhou projeção mundial, uma vez que a aprendizagem era construída juntamente com a ampliação da consciência política dos sujeitos. Não por acaso, Paulo Freire é até nossos dias reverenciado no mundo inteiro e aqui foi, neste governo, depreciado, o que é uma vergonha. ", enfatiza Ana Mariza Fontoura Vidal ao site Aventuras na História.

Resposta humanitária

A autora interroga por que uma civilização autodeclarada judaico-cristã se apresenta, após milênios, sem uma resposta humanitária. E desenvolve uma tese de como a experiência cristã, distinta da religiosidade, pode promover um mundo novo, cheio de “Graça”, ou seja, uma fé viva, não só dogmatizada e ritualizada.

"Política e religião são assuntos necessariamente relacionados, uma vez que a busca dos dois assuntos é uma ética verdadeiramente humanista. A condição humana pede tanto ações políticas voltadas para o bem comum como pede um algo mais, que só a  relação com o sagrado pode prover", diz ela. "No caso do Ocidente isso é gritante, já que atravessamos o século XX envoltos em duas grandes guerras e estamos percorrendo a terceira década do século XXI com índices absurdos de sofrimento e de baixíssima qualidade de vida. O ocidente está à beira de uma guerra que, se ocorrer, afetará todo o globo. E somos uma civilização chamada judaico-cristã! As pessoas que vemos naufragando em busca de um futuro melhor refletem o sintoma de uma grande e triste metáfora do fracasso ocidental. O que aconteceu com a civilização judaico-cristã?".

'Educação, educação, educação'

O título da obra é uma referência ao sacerdote do século V, Pelágio, cuja visão prevalece na cultura ocidental de que a moral cristã é suficiente para moldar o ser humano no sentido de um mundo mais digno. Um contraponto à visão de Agostinho – defendida pela psicóloga – de que somente sob a “Graça” os indivíduos podem tornar-se generosos, fraternos e justos.

Quando questionada sobre o que é necessário para o Brasil se tornar um país mais justo e igualitário, Ana Mariza Fontoura Vidal dá uma resposta crucial. 

"Educação, educação, educação. A Coreia do Sul mudou seus índices de qualidade de vida, em uma ou duas décadas, investindo em educação. E que a população melhor educada saiba lutar por seus direitos constitucionais. As pessoas que morreram e/ou perderam o que tinham neste janeiro chuvoso não foi por causa das chuvas; foi pelo desrespeito constitucional ao direito à moradia, saúde e segurança", finaliza ela. 


O triunfo de Pelágio e o mundo sem a Graça, Ana Mariza Fontoura Vidal - https://amzn.to/3sPZsQH

O triunfo de Pelágio e o mundo sem a graça Capa comum – Edição padrão, 1 janeiro 2020


No século V de nossa Era, dois sacerdotes, Pelágio e Agostinho de Hipona, alimentaram uma enorme polêmica sobre a relação entre a natureza humana e a necessidade ou não da Graça Divina para aperfeiçoá-la. Separado de Deus pelo pecado, o ser humano, segundo Pelágio, teria total condição de por sua própria consciência e vontade aperfeiçoar-se, ou seja, cumprindo os preceitos e dogmas da Igreja Católica Romana, poderia moralmente santificar-se. Agostinho de Hipona, ao contrário, profundo conhecedor da carne – corpo e alma –, acreditava que somente sob a Graça os indivíduos poderiam tornar-se generosos, fraternos e justos. Se bem compreendo, resumindo mui brevemente, Pelágio pregava que a moral cristã seria suficiente para moldar o ser humano no sentido de um mundo mais perfeito e digno. O mundo contemporâneo demonstra que o pensamento pelagiano, totalmente sem razão quanto ao aperfeiçoamento do homem, impôs-se através da transformação da experiência do viver o Cristo no cristianismo como nós o conhecemos e na moral cristã ensinada não só pelas igrejas cristãs, mas pelo ambiente cultural do ocidente.

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