Ruan Juliet direto da Rocinha: o Rio que o príncipe William não vê
O influenciador de 22 anos desmistifica a vida dentro da maior favela do Brasil e revela toda a inteligência, potência e criatividade que as manchetes de jornais não mostram

Foto: divulgação
Por Redação
em 7 de novembro de 2025
“Quem sabe da favela é quem mora aqui”, diz Ruan Juliet. Morador da Rocinha, no Rio de Janeiro, a maior favela do Brasil, com mais de 70 mil habitantes, o criador de conteúdo tem se tornado uma das vozes mais potentes das redes sociais ao mostrar o que é viver dentro de uma comunidade, longe dos estereótipos criados por quem vê tudo de fora. Seu olhar expõe um Rio invisível: aquele que nem os turistas, nem o príncipe William e tampouco quem vive do lado de lá do asfalto costuma ver. “A favela é muito mais do que tiro, porrada e bomba. Aqui tem criatividade, empreendedorismo, inteligência. Gente que não teve oportunidade, mas que é genial. Todo mundo tem curiosidade sobre como é a vida na comunidade, mas sempre foi a galera de fora contando a nossa história. Eu pensei: e se eu transformar meu cotidiano em conteúdo?”, conta.
Com humor, inteligência e um olhar afiado, Ruan mostra o lado criativo, trabalhador e humano da favela – um retrato raro em meio às manchetes que costumam associar o morro à violência e à criminalidade. “Na favela, se faz a engenharia da sobrevivência. Aqui, os pedreiros têm uma inteligência rara e a maioria nunca entrou numa universidade. Mesmo assim, eles constroem tudo: as casas, os becos, os degraus, as rampas. Esses caras já são criativos por natureza. Imagina eles com conhecimento na mão?”, diz.
LEIA TAMBÉM: “Sabe por que eu gosto tanto de falar de amor? É que eu já tomei muita porrada”, diz o ator Jonathan Azevedo
Mas ainda há muita falta. “Nós, moradores de favela, vivemos num mundo paralelo. Quem é de fora se pergunta: ‘Como conseguem viver assim?’ Fizeram a gente normalizar essa realidade. Vem eleição, vem promessas, e nada muda. Então, se essa é a realidade, a gente cria soluções criativas pra amenizá-la. É o que fazemos todos os dias”, diz. “Na comunidade, a necessidade vem antes do sonho. Dificilmente quem cresce em favela consegue terminar o ensino médio, e não é porque a gente não quer. Aos 14 anos você já precisa abandonar a escola para trabalhar e ajudar a colocar comida em casa. Nos bairros ricos, o sonho vem antes da necessidade”.
No papo com Paulo Lima no Trip FM, o influenciador de 22 anos também reflete sobre o impacto das operações policiais e a urgência de incluir as vozes das comunidades nas decisões do país. “Existem alternativas ao mundo do crime, mas o problema é o jovem da favela ser o que restou pra ele. O frete humano e o mototáxi são trabalhos dignos, mas nascem da ausência do Estado. Se houvesse política pública eficaz, eles nem precisariam existir. O Estado precisa oferecer escolhas que realmente transformem a vida desses jovens”, afirma. “A primeira coisa que precisamos entender é que falhamos como sociedade. Agora, precisamos nos reconstruir. Mas isso só vai acontecer se quem vive nas favelas for incluído nas decisões políticas. Enquanto isso, o país segue dividido, brasileiro contra brasileiro, e a gente não percebe que todo mundo tá perdendo. E quem perde mais, como sempre, é o povo da favela.”
Você pode ouvir o programa no play nesta página, no Spotify, Deezer e no YouTube da Trip, ou ler a entrevista a seguir.

Trip. Queria começar te ouvindo sobre a sua origem. De onde vem sua família?
Ruan Juliet. Eu sou filho de nordestinos – a maioria das favelas do Rio foi construída por nordestinos. Meu pai é de Guarabira, interior, e minha mãe de Queimadas, também do interior. Eu sou carioca, nascido e criado na Rocinha. Meu pai saiu da cidade com 11 anos, muito novo, atrás de emprego. Ele chegou a passar fome, veio pro Rio com o irmão e começou a trabalhar na praia, vendendo cadeira e guarda-sol. Minha mãe, como tantas mães brasileiras, trabalhou a vida inteira como doméstica.
E como foi a vida de vocês no começo, dentro da Rocinha? Onde moravam? A gente morava de favor na casa de uma amiga da minha mãe, que tinha uma lojinha de costura. Aí minha mãe foi fazendo amizades, desistiu de trabalhar como doméstica e começou a montar um pequeno empreendimento dentro da favela. Eu puxei muito dela. Hoje penso que o meu trabalho na internet vem da inteligência dela, de se virar, criar alternativas. Ela montou uma barraquinha, começou a ganhar um pouquinho de dinheiro e, com isso, saímos da casa de favor e fomos pra onde moro até hoje: um kitnet de 30 m², com quarto, cozinha e banheiro, no Valão. Não é a parte mais pobre da comunidade, mas também não é a mais rica. É o meio.
E o nome “Valão” tem a ver com o esgoto? Tem. Todo o esgoto da Rocinha passa por aqui. Quando chove, alaga muito. Às vezes não dá pra chegar em casa. Quando o tempo fecha, eu já fico com medo: “Tenho que ir pra casa logo, senão não volto”.
LEIA TAMBÉM: Edu Lyra, do Gerando Falcões, leva os empresários à favela
Como é a relação da molecada com a escola? Você conseguiu estudar? Terminei a escola, graças a Deus. Mas é importante entender a diferença. Uma criança no Leblon só precisa focar nos estudos. Ela enxerga a escola como uma oportunidade de alavancar a vida, de conseguir uma nova profissão. Dificilmente você vai ver isso na criança da comunidade. Porque ela cresce vendo a mãe, muitas vezes solo, trabalhar 24 por 48, sem tempo nem pra ter contato com o filho. E aí você cresce e não tem comida em casa, às vezes falta. Com 14 ou 15 anos, tem que escolher: estuda ou trabalha pra ajudar em casa, pra pôr comida na mesa, ou pra sair da casa pequena. Eu, por exemplo, nunca tive meu próprio quarto. Então é abandonar a escola e começar a trabalhar. Então dificilmente quem mora na favela consegue terminar o Ensino Médio. Não porque não quer, mas porque o ambiente não permite. Eu não vou pra escola ficar escrevendo enquanto eu tô passando fome. A fome fala primeiro. Você aprende a sonhar depois. Na favela, a necessidade vem antes do sonho. Lá no Leblon, o sonho vem antes da necessidade. São realidades completamente diferentes.
Em entrevista ao Trip FM, o ator Jonathan Azevedo contou que o curso de teatro dele custou três dentes. Ele falou que em três situações diferentes, quando estava indo para o no Nós do Morro, projeto que o formou como ator, ele foi abordado e agredido pela polícia. Como é pra você sair da Rocinha pro asfalto? Ainda existe esse medo, essa tensão? Eu costumo dizer que também tem muito a ver com autoestima. Pra quem cresce na favela, às vezes falta autoestima pra ir pro Leblon, pra Copacabana… “O que eu vou fazer lá? O meu mundo é aqui”. Porque quando a gente sai, vão olhar diferente pra nós. A polícia para muito: toda vez que eu pego um Uber pra sair da Rocinha, com meu cabelo platinado, o carro é parado. Mas não é só isso. É entrar numa loja e ficar sendo olhado torto, é chegar num restaurante e não se sentir bem. Falta autoestima. O jovem que cresce na favela sente isso na pele.
LEIA TAMBÉM: “Sei com qual país sonho, mas sei em qual país vivo”, diz Emicida
Como foi o começo da sua carreira como criador de conteúdo? Sou fruto de um projeto social da comunidade, que tinha aulas de teatro e futebol. Em 2019, depois da pandemia, um influenciador chamado Jacques Vanier visitou o projeto. Ele gostou de mim, começou a me gravar, fazer perguntas. Eu estava de Juliet – o óculos, muito famoso nas favelas aqui do Rio – e comecei a zoar ele, que ele era cowboy, de botina e chapéu. No último dia, ele perguntou ao dono do projeto se podia marcar meu arroba. Eu nem sabia o que era arroba. Quando ele me marcou, ganhei 10 mil seguidores. A partir disso eu fui desenvolvendo, continuei trabalhando na minha barraca e fui gravando devagarzinho.
Era uma barraca de eletrônicos, né? Isso. Comecei a trabalhar com 12 anos pra ajudar meus pais, vendendo carregador, controle, boneco. Meu sonho era aumentar a barraca dentro da Rocinha – e consegui. Antes das redes sociais, juntei dinheiro e reformei, fiz uma barraca maior. Depois que o Jacques me marcou, comecei a mostrar meu dia a dia, apresentar a Via Apia, a rua principal da Rocinha. Todo mundo sempre teve curiosidade sobre como é a vida na comunidade, mas ninguém daqui tinha voz. Sempre foi a galera de fora contando a nossa história. Aí eu comecei a transformar meu cotidiano em conteúdo. Transformei a Rocinha no palco, trouxe o Brasil e o mundo pra dentro da favela. Falei: vem pra cá, vem conhecer um pouco da nossa realidade, entender como a gente vive, entender que aqui existe muito além do que a galera fala há décadas. Aqui existe muita criatividade, muita gente empreendedora, muita gente inteligente, que às vezes só não teve oportunidade.

Você tem um olhar quase de arquiteto, mostrando as lajes, escadas, becos. Existe uma sabedoria enorme em criar a partir da carência. Como você enxerga isso? Daria pra trazer conhecimento técnico pra dentro da favela? Ninguém nunca tinha me falado isso, mas eu gosto muito da criatividade. É o conteúdo que eu mais piro em fazer porque realmente acho muito bizarro como que a galera foi dando um jeitinho. Os pedreiros têm uma inteligência muito rara, um conhecimento que eu falo: “Caraca, vocês fizeram alguma faculdade”. Mas a maioria não estudou. Se eu fosse fazer alguma coisa, traria um curso técnico para os pedreiros, porque eu acho que eles poderiam fazer muita diferença para a comunidade, transformando uma rampa, trazendo solução para os becos, para os degraus. Se eles já são criativos por si só, imagina esses caras com conhecimento na mão.
Quando comecei a fazer entrevistas no Trip FM, lá atrás, as referências dos jovens de favela eram o futebol, o samba e o crime. O cara queria ser jogador, sambista ou bandido, que era quem tinha ouro, roupa, moto, mulher. Hoje isso mudou? Quem são as referências de um moleque da Rocinha? Hoje a gente se inspira muito nos MCs, no rap. Além do cabelo platinado, por exemplo, tem o cabelo vermelho, que vem dessa galera. Esse estilo dentro da comunidade acaba dando uma sensação de poder. Se eu ficar só com o cabelo preto, não fico tão cria. Os MCs são uma galera que fala muito hoje com a comunidade.
LEIA TAMBÉM: Celso Athayde sempre quis fazer revolução
Boa parte do Brasil ainda associa favela ao crime – uma ignorância absurda, mas que ainda existe. Você tenta quebrar isso mostrando a vida real. Como dá pra mudar essa imagem? Essa visão vem do jeito que a grande mídia sempre tratou a favela e também das ficções que falam sobre ela. Quando comecei a gravar vídeo, além da criatividade, quis mostrar outras pessoas além do Ruan. Não só pessoas que trabalham fora da favela, o famoso CLT, mas profissões que nasceram a partir de necessidades locais. Um exemplo é o frete humano. O caminhão não sobe os becos, então jovens de 15, 20 anos viraram o “elevador” das obras, carregando areia, tijolo, cimento. É a fonte de renda deles. Estou construindo uma casa agora e todo o material é levado por esses jovens trabalhadores. Isso é mostrar para o Brasil a verdadeira realidade dentro da favela, porque as narrativas sempre foram de crime, de porrada. E as outras coisas? E aí a gente precisa se perguntar: será que todo mundo tem as mesmas 24 horas? Será que todo mundo tem o poder de escolha? Será que todo mundo consegue enxergar um caminho? Ou será que realmente o ambiente molda a sua escolha?
Recentemente houve uma chacina no Complexo do Alemão, um episódio lamentável. Você fez um vídeo que começa fazendo uma homenagem tanto os policiais mortos quanto os jovens da favela e disse que nada daquilo é bom pra ninguém. Como ficou o clima na Rocinha depois disso? Foi muito triste. Seja na Rocinha, no Vidigal, na Cidade de Deus, quem mora em favela começa a ficar com medo. A gente pensa: “fizeram lá, daqui a pouco vão vir pra cá”. E se eu estive na rua? E se eu estiver voltando do trabalho? Vidas foram perdidas dos dois lados e nada mudou. A vida segue igual. Ninguém fala do pós-operação: da falta de saneamento, de acessibilidade. A gente falhou como sociedade e precisa se reconstruir. Se é pra fazer política dentro da favela, tem que trazer o povo da favela pras decisões. Passam-se décadas e ainda não temos saneamento básico, mas seguimos discutindo plano de operação. Se ele resolvesse algo, já teria resolvido há muito tempo. Eu sou a favor da segurança, mas não adianta resolver a segurança sem resolver o resto.
LEIA TAMBÉM: Criador do Voz das Comunidades, René Silva fala sobre racismo e representatividade
Pra encerrar, eu queria saber um pouquinho dos seus projetos e do seu trabalho com marcas. Como está a sua situação empresarial? Graças a Deus, hoje eu consigo viver só das redes sociais. Demorou três anos pra isso acontecer. Só comecei a ganhar dinheiro no fim de 2022, com o primeiro trabalho. Antes disso uma casa de apostas me ofereceu dez mil reais por seis meses. Eu nunca tinha visto tanto dinheiro, vendia 70 reais por dia numa barraquinha, isso ia mudar um pouco a minha vida. Mas eu recusei. Não posso aceitar algo que vai contra os meus princípios, não posso mentir pro meu povo. Hoje eu não represento só o Ruan, represento a Rocinha e outros jovens de comunidades que acabam se inspirando em mim. A maioria das marcas com as quais eu trabalho estão dentro da comunidade de alguma forma. O Banco 24 Horas traz inclusão financeira, porque é como a gente tem acesso ao dinheiro físico; o iFood virou porta de emprego pros jovens, porque a gente sabe como é, quando você sai da escola com 18 anos e vai entregar um currículo, dificilmente é aceito quando fala onde mora; e a Águas do Rio abriu diálogo com os moradores, tem muita coisa pra mudar, mas já escutou muitas coisas nossas. As redes sociais estão me dando muita coisa, abrindo oportunidades e ,e fazendo conhecer muita gente. Esse papo, por exemplo, abre minha mente pra sair daqui e criar vídeos provocativos, construtivos, que gerem debate. É isso que todos os jovens da favela precisam: oportunidade e contato com outras pessoas e realidades.
Nenhum comentário:
Postar um comentário