Da luta contra a ditadura à guerra de narrativas: Tereza Cruvinel expõe bastidores da mídia e da política
Jornalista relembra clandestinidade, fundação do PT, guerra da mídia contra Lula, golpe de Estado contra Dilma e desafios da comunicação pública
A entrevista, conduzida por Hildegard Angel, leva Tereza a revisitar desde os tempos de militância clandestina até a “frigideira” nas Organizações Globo, passando pela criação da EBC, pela ofensiva midiática contra o presidente Lula e pelo golpe de Estado contra Dilma Rousseff, além dos dilemas atuais da mídia progressista e da comunicação pública.
Memórias de militância: juventude, ditadura e clandestinidade
Tereza lembra que começou a organizar suas memórias “aos pingos”, em capítulos, a partir de diferentes fases da vida: o movimento estudantil dos anos 1970, a luta contra a ditadura, a vida na clandestinidade, o trabalho na Baixada Fluminense e a formação do PT.
Ela conta que, ainda muito jovem, foi lançada à clandestinidade quando militantes da Convergência Socialista — “os últimos torturados da ditadura”, como ela diz — foram presos em Brasília. A direção da organização determina que ela não volte à capital:
“Você não volta para Brasília porque eles devem ter falado de você. Você vai ser presa também, torturada também… Fica aqui.”
Tereza então perde o emprego no IPEA, “demitida a bem do serviço público como subversiva”, e entra em fase de vida clandestina no Rio de Janeiro:
“Eu fiquei aqui um período de clandestinidade num apartamento, no Jardim Botânico, aos pés do Cristo Redentor. Eu achava aquela coisa mais linda, mas eu não podia sair na rua, né? Tava lá de molho num apartamento.”
Desse período nasce também uma história pessoal: um companheiro que levava jornais, notícias e fazia a ponte com o mundo “de fora” acaba se tornando seu companheiro de vida.
Baixada Fluminense: “exílio de classe” e semente do PT
Após passagens por abrigos de militantes em Teresópolis e em um sítio em Macaé, Tereza é enviada com outros companheiros para a Baixada Fluminense, em Nova Iguaçu, para “abrir frente operária”:
“Nós vamos para a Baixada Fluminense, abrir uma frente operária lá e tal. Aí vamos para Nova Iguaçu.”
Ali, ela descobre que a realidade era bem diferente do ABC paulista: poucas fábricas, muita pobreza e quase nenhuma estrutura cultural ou estudantil. Ao falar dessa experiência, Tereza cunha uma expressão forte:
“Eu chamava isso assim, exílio de classe, que é você sair de sua classe social, no caso a classe média mais urbana, e ir viver na periferia com pessoas bem mais pobres… É muito difícil esse tal de exílio de classe.”
Na Baixada, em vez de um forte “proletariado industrial”, ela encontra uma juventude sem espaços de cultura. A solução foi inventar esses espaços:
“Eu criei uma história chamada Movimento Cultural de Nova Iguaçu. (…) A gente criou, por exemplo, um cineclube ambulante… Cada sábado vai passar um filme num bairro pobre.”
Com rolos de filme emprestados da Embrafilme e projetores cedidos, eles exibiam clássicos como Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Bandido da Luz Vermelha em praças, igrejas e salões comunitários, além de organizar festivais de poesia.
Ao mesmo tempo, sob a proteção do bispo Dom Adriano Hipólito, ajudavam a organizar movimentos contra a carestia e associações de moradores:
“Dom Adriano era o grande protetor da gente. (…) Ele acolhia perseguidos de várias organizações de esquerda.”
Foi também na Baixada que Tereza ajudou a construir os primeiros núcleos do PT:
“Nós fundamos os núcleos do PT, os primeiros diretórios do PT… em Nova Iguaçu, Mesquita, Nilópolis, Caxias da Baixada Fluminense.”
As quatro correntes que fundaram o PT
Na entrevista, Tereza oferece uma síntese histórica da fundação do Partido dos Trabalhadores, apontando quatro “troncos” principais:
- Lula e os sindicalistas, emergindo das grandes greves do ABC;
- As comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, articuladas por figuras como Gilberto Carvalho;
- Os intelectuais, incluindo nomes como Florestan Fernandes, Marilena Chauí e Maria da Conceição Tavares;
- Organizações clandestinas de esquerda, entre elas o MEP, a Convergência Socialista (da qual Tereza fazia parte), a tendência O Trabalho e grupos da luta armada.
“Nossa organização foi uma das mais importantes aqui nesse grupo.”
Ela lembra que parte dos intelectuais, como Fernando Henrique Cardoso, preferiu permanecer no PMDB ao não vingar a ideia de um partido socialista “à moda europeia”, enquanto outros seguiram com Lula para o PT.
Do sonho revolucionário ao reformismo possível
Tereza é direta ao dizer que, naquele período, o objetivo da militância não era apenas derrubar a ditadura:
“Nós queríamos a revolução. (…) Derrubar a ditadura era um passo importante para depois investir na luta de classes… que isso nos levasse a uma revolução socialista.”
Hoje, ela contrasta aquele horizonte com o programa atual do presidente Lula, que ela define como um programa mínimo, reformista, voltado a direitos básicos:
“O Lula faz a justiça social. (…) Ele quer que as pessoas tenham direito à comida, um salário mais digno, que os filhos possam ir para a universidade. (…) Não tem nada de comunista, de revolucionário, nem de socialista nisso. É um programa mínimo.”
Apesar disso, Temer, o Congresso e as elites tratam até esse programa mínimo como ameaça, barrando reformas tributárias, taxação dos mais ricos e avanços distributivos. Ela sublinha que mesmo medidas moderadas, como a isenção do Imposto de Renda até 5 mil reais, enfrentam guerra feroz.
Evangélicos, crime e o vácuo deixado pela esquerda nas periferias
Um ponto central da reflexão de Tereza é a retirada da esquerda das periferias e o avanço das igrejas neopentecostais e do crime organizado como “provedores” onde o Estado não chega:
“A esquerda tinha esse assentamento nas periferias, que foi deixando de ter. (…) Quem ocupou o espaço? Os evangélicos. (…) Eles passaram a representar o Estado, a fazer aquilo que o Estado deveria fazer.”
Ela descreve um cotidiano em que igrejas conseguem médico, emprego, óculos, ajuda material, repetindo uma lógica que antes também era preenchida pelo crime em algumas favelas. E aponta inclusive a associação entre igrejas e grupos criminosos em certos territórios, num fenômeno ainda pouco conhecido em profundidade pela sociedade.
Da página nobre do Globo à frigideira
Tereza entrou no jornal O Globo em 1983, no contexto da abertura política, e se tornou uma das principais colunistas políticas do país, ocupando a página 2 do jornal e comentando na GloboNews. Ela lembra que aquele período pós-ditadura foi mais plural na imprensa:
“Foi um período bom para a imprensa. Os jornais eram mais abertos, não tinha perseguições internas, tinha pluralismo.”
Ela cita o exemplo de Franklin Martins — ex-militante da luta armada e participante do sequestro do embaixador dos EUA — que se tornou comentarista do Jornal Nacional, e outros jornalistas com passado de esquerda que foram acolhidos nas redações.
Tudo muda, porém, com a chegada de Lula à Presidência em 2003 e, sobretudo, com o chamado “mensalão” em 2005:
“A imprensa começa a fazer jornalismo de guerra quando o Lula chega à Presidência. (…) 2005 é um marco: agora é a oportunidade. Vamos mostrar que esse PT é corrupto, que esse Lula não vai se reeleger.”
As divergências de Tereza com a linha dominante dentro do Globo se agravam. Ela conta que sua coluna muitas vezes destoava da “matéria política do dia” e que seus comentários na GloboNews eram contestados por Merval Pereira e às vezes por Mônica Waldvogel.
Além da pressão interna, vinha o bombardeio externo: ataques de colunistas como Reinaldo Azevedo e Diogo Mainardi, colunas hostis na Folha de S.Paulo e patrulha constante:
“Eu caí na frigideira. (…) Minha situação era muito insustentável. Sofria ataques internos e externos.”
O jantar com Lula que virou escândalo midiático
Um episódio simbólico dessa “frigideira” foi o famoso jantar com o presidente Lula em sua casa, em Brasília. A ideia, conta Tereza, surgiu de um bilhete em que ela sugeria que Lula melhorasse a relação com a imprensa, promovendo encontros informais, como fazia Fernando Henrique.
O recado chega ao presidente, que liga pessoalmente para ela e propõe um jantar com jornalistas — na casa de Tereza:
“Ele falou: ‘Assim que eu chegar da Índia nós vamos marcar. Eu quero que seja na sua casa, não quero ir lá no Alvorada’.”
Veículos hesitam. O Globo se recusa a pagar o jantar, a Folha inicialmente proíbe seus jornalistas de irem porque o evento seria “na casa da colunista do Globo”, e Tereza conta com ajuda do restaurateur Marco Aurélio, que doa vinhos e ajuda no menu.
O encontro é longo, informal, sem cobertura imediata porque termina de madrugada. Mas, dois dias depois, o foco da mídia não é o conteúdo político da conversa:
“Foi um festival. (…) Criticaram o fato de o jantar não ser no Alvorada, mas na casa de uma colunista ‘amistosa’ do Globo. (…) Diziam que eu tinha reservado para mim o lugar à direita do presidente.”
Como se não bastasse, logo depois explode o caso Valdomiro, primeiro grande escândalo do governo Lula, e o contexto político se torna ainda mais hostil. O jantar passa a ser usado como munição para acusar proximidade excessiva da colunista com o governo. Tereza resume:
“O investimento do jantar foi para o ralo.”
Mensalão, Lava Jato, golpe de Estado contra Dilma e prisão de Lula
Na leitura de Tereza, o “mensalão” foi o ponto de virada em que a mídia tradicional assumiu abertamente um objetivo político: destruir o PT e impedir a reeleição de Lula. Ela lembra o uso abusivo da “teoria do domínio do fato” na Ação Penal 470 e critica a distorção de um caso que, na sua visão, era de caixa dois eleitoral, tal como praticado por outros partidos.
Ela relembra a frase de Lula — “o PT fez o que todos os partidos fazem” — e como ela foi utilizada contra o presidente, justamente por dizer uma verdade inconveniente.
Tereza enxerga nessa sequência — mensalão, Lava Jato, demonização de Lula e do PT — a preparação do terreno para o golpe de Estado contra Dilma Rousseff em 2016 e para a prisão de Lula em 2018, exemplos clássicos de lawfare:
“A direita sempre ganha na violência política. (…) 2016, a derrubada da Dilma com pseudo impeachment, aquilo é violência política.”
Ela observa que o próprio Judiciário, que foi “cruel” em 2012, acabou revertendo parte do estrago anos depois, ao reconhecer a parcialidade de Sérgio Moro e anular condenações, em grande medida porque havia percebido o monstro que ajudara a criar com Jair Bolsonaro.
Mídia independente, “blogs sujos” e o papel do Brasil 247
Hildegard provoca Tereza sobre o preconceito da mídia corporativa em relação aos veículos progressistas, tratados como “refugo” da grande imprensa. Tereza responde defendendo o papel histórico da mídia independente:
“A mídia independente cumpriu um papel muito importante, a mídia digital independente. (…) As mídias independentes digitais foram fundamentais na resistência ao bolsonarismo.”
Ela lembra que, no início, jornalistas espurgados das grandes redações criaram blogs progressistas, logo carimbados pela direita como “blogs sujos”. Alguns se consolidaram como portais robustos, como o Brasil 247, o GGN, a Revista Fórum, o DCM e outros.
Mesmo assim, o preconceito e o problema do financiamento persistem. Tereza destaca que a publicidade oficial reserva apenas “migalhas” para a mídia independente, enquanto despeja grandes volumes nas corporações tradicionais. E critica fake news sobre supostos privilégios, como a lenda de que o 247 “ganharia dinheiro do Google”, hoje objeto, lembra ela, de ação judicial de Leonardo Attuch contra um jornalista que disseminou essa mentira.
TV pública, EBC e a destruição promovida por Temer
Uma parte importante da entrevista trata do livro de Tereza sobre a EBC e a TV pública. Ela lembra que foi convidada por Franklin Martins e pelo próprio presidente Lula para ser a primeira presidente da EBC, após anos na frigideira no Globo.
No cargo, liderou a criação da TV Brasil Internacional, canal público brasileiro distribuído em dezenas de países:
“Eu criei o canal TV Brasil Internacional, que eu coloquei em 40 países.”
Esse projeto foi brutalmente interrompido após o golpe de Estado contra Dilma e a chegada de Michel Temer ao poder, com intervenção e fechamento do canal internacional:
“Esse canal depois foi fechado pelo Temer. Agora estão tentando recriar.”
Tereza insiste que o futuro da comunicação pública depende de decisão política e de investimento, especialmente num eventual segundo mandato do presidente Lula. Ela fala em cobertura nacional efetiva, rede estruturada e uma presença internacional consistente, que vá além de versões tímidas do que já foi feito.
Eleições de 2026, Donald Trump e a interrogação sobre a mídia
Já olhando para a frente, Tereza manifesta preocupação com o cenário eleitoral de 2026. Ela lembra como em 2006 a mídia corporativa fez “de tudo” para impedir a reeleição de Lula, explorando até o caso dos “aloprados” com uso massivo de imagens de dinheiro nas TVs na véspera da votação.
“A cruzada da mídia corporativa era o quê? Não deixar esse cara se reeleger.”
Agora, ela vê um contexto ainda mais complexo, com redes sociais, algoritmos e máquinas profissionais de fake news, além da mídia tradicional. Tereza observa que o presidente Lula, hoje, precisa equilibrar também a relação com Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, e questiona se as elites locais e o imperialismo americano aceitarão pacificamente uma nova reeleição do líder brasileiro:
“Ano que vem, as elites locais e o próprio imperialismo americano vão deixar o Lula se reeleger?”
Para ela, o comportamento da mídia em 2026 é uma grande incógnita:
“Ano que vem vai ser, eu acho, pior, mais difícil do que 2006. A mídia vai se comportar como em 2006 ou vai tentar ser profissional de verdade?”
Entre passado e futuro: a voz de duas “velhas jornalistas jovens”
Hildegard encerra a conversa definindo Tereza como “um ativo importante da mídia brasileira”, enquanto as duas brincam com a ideia de um “canal das inabilitadas” para empreender na internet. Tereza, por sua vez, valoriza a existência de veículos progressistas como o Brasil 247 e a persistência do público que os apoia com assinaturas e pequenas contribuições:
“Acho que esse é um fenômeno muito importante. (…) Não sei qual é o futuro das mídias digitais independentes, mas elas cumpriram e cumprem um papel relevante.”
Entre memórias da Baixada Fluminense, a lembrança dos companheiros que tombaram na luta armada, os embates com a Globo, a destruição da EBC por Temer e a disputa de narrativas em torno de Lula e do golpe de Estado contra Dilma, Tereza Cruvinel mostra que sua história pessoal é, também, um capítulo denso da história recente do Brasil — e um alerta sobre o que pode estar em jogo nas próximas eleições.
No livro que acaba de lançar sobre a guerra em torno da TV pública e na entrevista a Hildegard Angel, Tereza continua fazendo o que sempre fez: contando a história, chamando as coisas pelo nome e lembrando que, sem memória e sem crítica, o campo democrático corre o risco de ser atropelado, de novo, pela violência política e pela máquina de mentiras que se constrói, todos os dias, a partir da mídia e do poder.

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