sábado, 24 de setembro de 2022

A família Silva no poder: uma profecia política de Rubem Braga


A família Silva no poder: uma profecia política de Rubem Braga

JULIÁN FUKS

OPINIÃO

A família Silva no poder: uma profecia política de Rubem Braga

Rubem Braga, em 1975  - Alberto Jacob / Agência O Globo
Rubem Braga, em 1975 Imagem: Alberto Jacob / Agência O Globo










Nunca deveríamos esquecer a profecia política de Rubem Braga. Era 1935, e ele publicou uma crônica sentida sobre a morte de um desconhecido, um sujeito pobre chamado João da Silva, morto por hemoptise, enterrado na vala comum da miséria. Na falta de alguma honraria, Braga escreve o elogio fúnebre do homem que nunca viu, escreve em nome da imensa família Silva, uma família sem importância nenhuma, como ele diz, que mora em várias casas e várias cidades do país, que mora principalmente na rua. E então se permite sua sentença final, promessa de redenção futura.

A crônica tem a beleza habitual das coisas de Rubem Braga, sua sensibilidade nua, e merece ser lida na íntegra. Mas o que ele faz em essência ali é a exaltação do homem simples, da mulher simples, a louvação da complexidade e da força desses sujeitos que construíram pedra por pedra o Brasil. E, ao exaltar esse homem singular, faz também a afirmação de uma linhagem tão tortuosa quanto inconfundível. "No fundo, somos os Silva. Quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços. Somos os Silva." Por admiração, por ideologia, Braga cumpre seu desejo de se unir à família e assim se declara mais um João da Silva.

Volto a essa profecia em ano longínquo, às vésperas de uma eleição que o grande cronista não testemunhará, volto pensando em Luís Inácio Lula da Silva. Lula, ainda que em suas contradições e limites, sempre foi um Silva no poder, com sua mão mutilada de torneiro mecânico, com o sorriso calmo de quem passou e já não passa fome, com a voz rouca de quem já clamou demais por justiça. Lula sempre foi o homem simples que ascendeu na política, mesmo quando sua rede de alianças já contava com os antípodas históricos da família Silva, ou com os imemoriais exploradores de seus pobres ofícios. Lula continuou sendo um Silva quando as mesmas elites o traíram e o condenaram a um degredo novo, desconhecido. A profecia que uma vez se cumpriu pode agora se repetir, e é natural que exija essa insistência: ninguém esperaria que um Silva triunfasse em paz na política brasileira, sem suscitar reações enfurecidas.

Não se trata aqui de uma tentativa de mitificar a pessoa que é Lula — de mitos, afinal, já estamos ou deveríamos estar fartos. Trata-se, sim, de contemplar o simbolismo que sempre houve e ainda há em sua candidatura, que excede a si mesma e se ramifica de mil maneiras pelo passado e pelo futuro do país. Lula tem consciência desse limite pessoal, tem consciência de ser menor do que aquilo que representa, e isso talvez explique algo de sua leveza e de sua alegria — na Rua da Alegria vivia João da Silva, registre-se. "Eu não sou um ser humano, sou uma ideia. E não adianta tentar acabar com as ideias", foi o que disse Lula quando deixou a prisão pela segunda vez, e a frase foi entendida por alguns como expressão de soberba. Era o contrário, a meu ver: era sua maneira de se reivindicar um Silva, de se afastar de si para se alinhar às lutas históricas dessa família que não encontra limites.

A clarividência se manifesta muitas vezes de forma torta, incompreensível. É evidente que Rubem Braga não fez profecia nenhuma, não viu a eleição de Lula com muitas décadas de antecedência, não se renderia à mística banal dos adivinhos. O que ele viu, sim, foi a inevitabilidade de um movimento maior, a necessidade de uma revolta daquela imensidão de sujeitos condenados à miséria, enterrados em vala comum através dos tempos. E viu que ele próprio não poderia permanecer à margem dessa revolta, mesmo que ele não fosse um Silva. Viu que era aos Silva que ele deveria emprestar a potência de suas palavras. 

Eis a noção elementar que se manifesta na crônica de Rubem Braga, e que talvez nos sirva para compreender o que há de elementar em nosso presente. Neste momento, sente-se com força o imperativo ético de se alinhar aos Silva, a toda essa gente que "trabalha nas plantações, nos pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas fábricas, nas minas, nos balcões, no mato, nas cozinhas, em todo lugar onde se trabalha". Neste momento, não há saída senão se juntar à multidão dilatada dos Silva, que responde por uma infinidade de nomes. Não há muito mais a dizer senão fazer coro com as vastas minorias que gritam, cada vez mais alto, contra aqueles que estão no poder e insistem em persegui-las e em submetê-las à dor e à fome. Não há opção melhor do que se juntar à horda de Joões da Silva.



JULIÁN FUKS

Nunca deveríamos esquecer a profecia política de Rubem Braga. Era 1935, e ele publicou uma crônica sentida sobre a morte de um desconhecido, um sujeito pobre chamado João da Silva, morto por hemoptise, enterrado na vala comum da miséria. Na falta de alguma honraria, Braga escreve o elogio fúnebre do homem que nunca viu, escreve em nome da imensa família Silva, uma família sem importância nenhuma, como ele diz, que mora em várias casas e várias cidades do país, que mora principalmente na rua. E então se permite sua sentença final, promessa de redenção futura.

A crônica tem a beleza habitual das coisas de Rubem Braga, sua sensibilidade nua, e merece ser lida na íntegra. Mas o que ele faz em essência ali é a exaltação do homem simples, da mulher simples, a louvação da complexidade e da força desses sujeitos que construíram pedra por pedra o Brasil. E, ao exaltar esse homem singular, faz também a afirmação de uma linhagem tão tortuosa quanto inconfundível. "No fundo, somos os Silva. Quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços. Somos os Silva." Por admiração, por ideologia, Braga cumpre seu desejo de se unir à família e assim se declara mais um João da Silva.

Volto a essa profecia em ano longínquo, às vésperas de uma eleição que o grande cronista não testemunhará, volto pensando em Luís Inácio Lula da Silva. Lula, ainda que em suas contradições e limites, sempre foi um Silva no poder, com sua mão mutilada de torneiro mecânico, com o sorriso calmo de quem passou e já não passa fome, com a voz rouca de quem já clamou demais por justiça. Lula sempre foi o homem simples que ascendeu na política, mesmo quando sua rede de alianças já contava com os antípodas históricos da família Silva, ou com os imemoriais exploradores de seus pobres ofícios. Lula continuou sendo um Silva quando as mesmas elites o traíram e o condenaram a um degredo novo, desconhecido. A profecia que uma vez se cumpriu pode agora se repetir, e é natural que exija essa insistência: ninguém esperaria que um Silva triunfasse em paz na política brasileira, sem suscitar reações enfurecidas.

Não se trata aqui de uma tentativa de mitificar a pessoa que é Lula — de mitos, afinal, já estamos ou deveríamos estar fartos. Trata-se, sim, de contemplar o simbolismo que sempre houve e ainda há em sua candidatura, que excede a si mesma e se ramifica de mil maneiras pelo passado e pelo futuro do país. Lula tem consciência desse limite pessoal, tem consciência de ser menor do que aquilo que representa, e isso talvez explique algo de sua leveza e de sua alegria — na Rua da Alegria vivia João da Silva, registre-se. "Eu não sou um ser humano, sou uma ideia. E não adianta tentar acabar com as ideias", foi o que disse Lula quando deixou a prisão pela segunda vez, e a frase foi entendida por alguns como expressão de soberba. Era o contrário, a meu ver: era sua maneira de se reivindicar um Silva, de se afastar de si para se alinhar às lutas históricas dessa família que não encontra limites.

A clarividência se manifesta muitas vezes de forma torta, incompreensível. É evidente que Rubem Braga não fez profecia nenhuma, não viu a eleição de Lula com muitas décadas de antecedência, não se renderia à mística banal dos adivinhos. O que ele viu, sim, foi a inevitabilidade de um movimento maior, a necessidade de uma revolta daquela imensidão de sujeitos condenados à miséria, enterrados em vala comum através dos tempos. E viu que ele próprio não poderia permanecer à margem dessa revolta, mesmo que ele não fosse um Silva. Viu que era aos Silva que ele deveria emprestar a potência de suas palavras. 

Eis a noção elementar que se manifesta na crônica de Rubem Braga, e que talvez nos sirva para compreender o que há de elementar em nosso presente. Neste momento, sente-se com força o imperativo ético de se alinhar aos Silva, a toda essa gente que "trabalha nas plantações, nos pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas fábricas, nas minas, nos balcões, no mato, nas cozinhas, em todo lugar onde se trabalha". Neste momento, não há saída senão se juntar à multidão dilatada dos Silva, que responde por uma infinidade de nomes. Não há muito mais a dizer senão fazer coro com as vastas minorias que gritam, cada vez mais alto, contra aqueles que estão no poder e insistem em persegui-las e em submetê-las à dor e à fome. Não há opção melhor do que se juntar à horda de Joões da Silva.

Rubem Braga, em 1975  - Alberto Jacob / Agência O Globo
Rubem Braga, em 1975 Imagem: Alberto Jacob / Agência O Globo



Julián Fuks


JULIÁN FUKS

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A família Silva no poder: uma profecia política de Rubem Braga

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