domingo, 13 de março de 2022

 

A maravilhosa danação de ter um corpo
Conceição Freitas 
Publicado em 13 de março de 2022

Num de seus romances menos conhecidos, Italo Calvino conta a história de um cavaleiro que existe mas não existe, tem nome, armadura e escudeiro, porém, mesmo dotado de enorme coragem e sabedoria, não tem corpo, O cavaleiro inexistente.

Até mais ou menos os 40 e poucos anos, eu também não tinha corpo, embora a carcaça aqui estivesse em bem melhores condições físicas do que hoje. Eu não sabia que não tinha corpo, posto que ocupava um lugar no espaço, usava roupas, surgia no espelho, tocava o corpo do outro e já tinha tido um filho.

 

 

É que o corpo não é apenas esse volume funcional onde a vida existe – sem corpo não há vida como a conhecemos. Um corpo pode cumprir com louvor o seu papel biológico e muito mais que isso: produzir, criar, se multiplicar, enfrentar batalhas, vencê-las mas ser inexistente tal qual o do cavaleiro Agilulfo Bertrandino dos Guiuldiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, do romance de Calvino. Uma armadura garbosa e vazia, um cheio que é nada.

Um grande amigo, jornalista, crítico literário, poeta dos bons dizia que desde adolescente lia muito, lia tanto que se esquecia do próprio corpo. Até que um dia percebeu que precisava ter-se a si mesmo, fora dos livros.

— Ter um corpo é muito complicado, é preciso coragem, ele me disse.

Não basta ter um corpo biológico para ter um corpo que esteja simbiótica e simbolicamente ligado à alma, ao espírito, ao âmago, à mente, à força motriz de cada um de nós.

Consigo me lembrar do instante em que passei a ser eu e meu próprio corpo. Eu descia do carro no estacionamento do trabalho, num dia qualquer. Num átimo, como se eu tivesse magicamente me apropriado do que era meu, percebi que não era mais um fantasma de mim mesma conduzindo um corpo como quem empurra um carrinho de mão ou manipula um fantoche de circo. Eu havia conquistado meu próprio corpo, éramos, finalmente, uma coisa só, embora múltipla, fraturada, instável, febril, atrapalhada, trôpega.

 

 

Um corpo dá muito trabalho não importa a idade que tenha. O corpo às vezes vai pra um lado e o pensamento pra outro. Não poucas vezes não aceita voz de mando, convulsiona, paralisa, palpita, treme, seja por razões biológicas ou emocionais, e elas se misturam e às vezes o que dói não é o estômago, é a ansiedade; o que esfria não é o tempo, é o medo; o que esquenta não é o calor, é o desejo. E já não sei mais onde começo nem onde termino, se consigo parar ou se vou ainda mais longe

Quantas vezes eu quis ir a algum lugar ou fazer alguma coisa e meu corpo não me obedeceu? E quantas ele fez o que quis, embora eu mesma, dentro do corpo, estivesse convencida de que não queria fazer o que fiz? E quantas saí a esmo, porque meu corpo assim me ordenava – há momentos em que o corpo precisa se expandir para fora de si mesmo. Talvez seja por isso viajamos, escalamos montanhas, mergulhamos nos mares, enfrentamos ondas gigantescas, saltamos a quatro mil pés. O que fazem os andarilhos de longos percursos senão sair de si mesmos levando consigo o próprio corpo?

Como disse o meu amigo poeta, ter um corpo é uma complicação das grandes. Tem hora que o corpo é um leão voraz, outras um inseto acuado, uma tartaruga preguiçosa, uma cobra sibilante, uma hiena cínica, uma ostra amedrontada, um porco cheio de espinhos. Ser acoplada ao próprio corpo, como uma alma de carne e osso, é uma danação, mas é o único modo de se ser verdadeiramente sapiens, essa estranha espécie que não é nem bicho nem deus.

(as ilustrações desse texto são de Fernando Lopes @fernandolopesilustrador)

Conceição Freitas

Sou filha de quatro cidades: Manaus, Belém, Goiânia e Brasília. Repórter, cronista e dona de uma banquinha de afetos brasilienses. Guardo em mim amores eternos e 11 prêmios de jornalismo – o mais importante deles, Esso Nacional – por uma série de histórias de amor entre excluídos, portadores de necessidades especiais e errantes de todo tipo. Fui repórter de polícia, cidades, cultura, Brasil. Neta de negro e de índio, sou brasileira até o último fio de cabelo cacheado. Adoro descobrir o sentido que cada pessoa dá à vida. É do sentido delas que construo o meu.


Nenhum comentário:

Postar um comentário