Elas por Elas
O novo mapa da fome: 125 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar
Em 2004, o cenário era exatamente o oposto: o Brasil tinha 60% das pessoas em situação de segurança alimentar e, em 2009, chegou a 77%, afirmou Elaine Leandro Machado, professora e pesquisadora da Faculdade de Medicina UFMG.Falta comida na mesa de quase 60% da população brasileira. São mais de 125 milhões de pessoas, 59,4% dos domicílios brasileiros, que se encontram em situação de insegurança alimentar no país atualmente, segundo o levantamento do grupo “Alimento para Justiça” da Universidade Livre de Berlim.
Antes de avançar sobre os dados, é preciso entender do que se trata quando falamos em segurança alimentar. Existem várias formas de mensurar e classificar essas faixas, porque não se trata apenas do acesso ao alimento, mas da preocupação, da qualidade, da quantidade e da restrição, também conhecida por “passar fome”. Porém, via de regra, é possível dividir em três níveis:
Leve: Quando as pessoas têm uma preocupação com a falta de alimento. E a mudança de qualidade: substituição de alimentos ricos de proteínas, vitaminas e nutrientes, por alimentos mais baratos com muita farinha, açucares e altamente industrializado.
Moderada: Faltam algumas refeições no dia. Os adultos diminuem as suas refeições e pensam em estratégias de substituição
Grave: já há restrição alimentar importante, ou a falta de refeição, podendo a família ficar o dia todo sem refeição alguma.
Esta é a primeira matéria de uma série sobre Segurança Alimentar. Nesta introdução, vamos abordar os dados publicados no Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo que partem de 2004 e tem como data limite o intervalo entre 2017-2018. Portanto, não considera o agravamento da situação alimentar no país causado pela má gestão da pandemia.
Soma-se a esse cenário o fato de o governo Bolsonaro, propositalmente, não investir em pesquisas e censos mais recentes do IBGE para não revelar o abismo profundo e o completo fiasco de sua condução para o país.
Apesar disso, o novo mapa da fome no Brasil escancara que a fome não é fruto apenas da crise sanitária provocada pela pandemia, mas um projeto político genocida encampado pelos ultraliberais e pela extrema direita, a partir do golpe de 2016 que retirou a presidenta Dilma e interrompeu a consolidação de um projeto democrático e de justiça social no Brasil.
Uma questão de classe social.
No Brasil, um país marcado pela desigualdade e divisão social do trabalho, os rendimentos de cada família exercem forte influência sobre as situações alimentares e revelam as condições desiguais de reprodução social das famílias.
O Atlas das situações alimentares no Brasil revela que domicílios com menor rendimento gastam menos com alimentação, mas comprometem uma parte maior do orçamento doméstico para adquirir os alimentos.
Ou seja, quanto mais pobre a família, maior é o comprometimento do orçamento com alimentação.
Em 2017-2018, nos domicílios com rendimento de até 2 salários-mínimos, a despesa média mensal com alimentação era de 329 reais, o que representava 22% da despesa total. Já nos lares com renda superior a 25 salários-mínimos, esse valor era de 2.061 reais, mas representava apenas 7,6% da despesa total (IBGE, 2019).
Pobres comprometem mais de 20% da própria renda para sobreviver
Ricos comprometem apenas 7% da própria renda para se alimentar e gastam 6 vezes mais que pobres.
A trilha do desespero
Existem várias formas de mensurar e classificar as diversas situações de insegurança alimentar que as pessoas podem passar.
No entanto, as pesquisas demonstram que as experiências relacionadas à privação de alimentos tendem a seguir uma mesma sequência, uma espécie de degrau do desespero por causa da fome:
Preocupação ou ansiedade provocada pela perspectiva de que as reservas alimentares não sejam suficientes (componente psicológico)
A qualidade da alimentação tende a ser sacrificada (componente qualitativo)
A quantidade também é comprometida (componente quantitativo)
Interrupção do padrão alimentar usual, passando a adquirir alimentos de maneiras socialmente inaceitáveis (componente social)
Por onde ela saiu, por onde ela voltou
Segundo o levantamento do Atlas, a distribuição das situações alimentares no Brasil está relacionada diretamente às classes de rendimento, à situação rural ou urbana dos domicílios e à localização em determinada unidade da federação ou grande região do país.
Em 2004, o Brasil tinha doze estados onde a proporção de domicílios em situação de fome superava os 20%, todos localizados nas regiões Norte e Nordeste. Em 2013, apenas o Maranhão permaneceu nessa condição. No entanto, no último período, seis estados retornaram a essa situação e se somaram ao Maranhão: Acre, Amazonas, Amapá e Pará, na região Norte; e Rio Grande do Norte e Alagoas, no Nordeste.
Destaca-se no estudo o deslocamento da área com maior prevalência de fome no país em direção à região Norte: em 2017-2018, dos cinco estados com maior prevalência de fome, quatro localizavam-se nessa região.
A fome não está só “lá”, está também nos grandes centros
Os estados da Bahia e de São Paulo se destacam por apresentar uma quantidade de domicílios em situação de fome maior do que os demais estados. O estudo revela que, no caso de São Paulo, entre 2013 e 2017-2018, mais do que duplicou o número de domicílios em situação de fome, os quais passaram de pouco mais de 520 mil para quase 1,2 milhão (um aumento de 126%). Minas Gerais e Rio de Janeiro estiveram entre os dez estados com maior quantidade de domicílios em situação de fome. Em 2017-2018, havia mais de 500 mil domicílios nessa situação em cada um desses estados.
Ao considerar a situação de risco de fome em termos absolutos, São Paulo, nunca ficou abaixo de 1 milhão de domicílios e, em 2017-2018, havia 3,6 milhões de domicílios nessa condição (2,3 vezes mais do que Minas Gerais, o segundo estado com mais domicílios em risco de fome).
A fome tem cor e tem gênero
Não é novidade que a crise econômica bate primeiro na porta das mulheres. Elas são as primeiras a perderem direitos, postos de trabalho, a serem despejadas. No caso das mulheres negras, a situação é ainda pior, por conta do racismo estrutural que acomete toda a população negra.
Sendo assim, se o peso do machismo e do racismo versa sobre todas as chances de buscar um futuro melhor, principalmente no que tange à geração de renda, a fome não tarde em assombrar e acometer famílias lideradas por mulheres.
O Atlas aponta que onde tinha um lar com uma mulher de referência a chance de passar por uma situação de fome (15,4%) ou risco de fome (26,2%) era maior.
Ainda segundo o estudo, em 2017-2018, 6,4 milhões de lares cuja pessoa de referência era preta ou parda relataram passar fome, frente a 2,3 milhões de domicílios em que era branca. Da mesma forma, em 16,9% dos lares em que a pessoa de referência era preta ou parda foram relatadas experiências de fome, mais do que o dobro da proporção de domicílios em que era branca (7,4%).
A saída para o futuro
O estudo apontou os resultados expressivos dos governos do PT no combate à fome no país, ainda que este seja um desafio permanente, diante de uma sociedade brutalmente desigual como a brasileira. E destacou também o papel do golpe parlamentar de 2016, em que ganhou força no país um projeto conservador e ultraliberal que, entre outras coisas, promoveu uma retração dos direitos trabalhista e previdenciário e estipulou um teto para o gasto público.
Conforme apontamos ao longo da matéria: renda, situação territorial e localização geográfica são fatores determinantes para a situação alimentar de uma família. Políticas de geração de renda, investimento em logística e infraestrutura, diminuição do preço do petróleo (para impactar menos no deslocamento e no preço dos alimentos, além do gás de cozinha) e uma política de agricultura familiar, que permita a subsistência nos diversos tipos de solo brasileiro são passos importantes para combater a fome no país mais uma vez.
A professora e pesquisadora da UFMG, Elaine Leandro Machado, complementa e reforça que isso tem um impacto não só nas sobrevivências das famílias, mas na economia do país como um todo.
“Qualquer país que queira ser um país desenvolvido precisa diminuir seus níveis de pobreza. É preciso programas sociais de complementação de renda e geração de emprego, para colocar a renda que foi perdida na casa do trabalhador. Uma população com saúde pobre impacta diretamente os níveis de desenvolvimento sócio-econômicos daquele país”, sintetizou.
Ana Clara Ferrari, Agência Todas
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