segunda-feira, 30 de maio de 2022


'Ninguém se importa': ataque a população de rua se intensifica em Brasília '
 
De madrugada, os filhos de ricos, bêbados, que passam a noite na balada, passam por aqui gritando dos carros: Vamos botar fogo em vocês, seus vagabundos, suas putas' À tarde, enquanto parte da população está trabalhando, duas mulheres estão deitadas num colchão em uma barraca improvisada. As duas conversam, fumam, mas não saem dali. Quem passa, das duas uma: uns abrem as janelas dos carros para atirar pedras, papéis e latinhas na direção delas, outros param e deixam doações. As duas mulheres vivem num gramado que beira a via de acesso à L4, em Brasília. A pista também é conhecida como avenida das Nações, pois o trecho leva às embaixadas fixadas na cidade. A barraca fica a cerca de 5 km da Praça dos Três Poderes. Mas as duas mulheres, na verdade, estão longe demais de quaisquer tipos de poder — autoridades, liturgias, protocolos, ritos e regimentos para tocar a vida do país, nada disso as alcança.

Nem a elas nem as cerca de 60 pessoas que vivem ali. Ou as 30 que estão mais abaixo, num dos pontos da L3, pista de acesso à UnB (Universidade de Brasília). Ou mais acima, na 910 Norte. Na Asa Sul não é diferente. Tampouco no Noroeste, bairro mais novo e que já teve o metro quadrado mais caro do país. Na pandemia, o Distrito Federal, uma das unidades mais ricas da federação, registrou o maior crescimento da pobreza do país: em janeiro de 2021, havia 170.871 famílias de baixa renda na capital, segundo a Sedes (Secretaria de Desenvolvimento Social); em abril de 2022, o número foi a 222.430. Nilva Oliveira, 45, e Edilene Alves, 42, viram isso acontecer na vizinhança. Aumentou  o número de pessoas com quem elas dividem o gramado — e aumentaram os ataques contra as pessoas que precisaram se instalar ali. Ninguém dorme uma noite inteira. Há um revezamento subentendido para que haja sempre alguém acordado, em vigília. A história de Galdino Jesus dos Santos é sempre lembrada. Liderança indígena da etnia pataxó-hã-hã-hãe, ele viajou a Brasília para tratar da demarcação de terras no sul da Bahia, em 1997. Dada a hora, depois de não conseguir entrar na pensão em que estava hospedado, abrigou-se em uma parada de ônibus na W3 Sul, importante pista do Plano Piloto, onde foi vítima do crime brutal. Cinco homens da elite brasiliense atearam fogo nele. "De madrugada os filhos de ricos, bêbados, que passam a noite na balada, passam por aqui gritando da janela dos carros: 'Vamos botar fogo em vocês, seus vagabundos, suas putas'. Jogam vidros de bebidas", contam Nilva e Edilene. "Não importa quantas pessoas têm aqui, se tem criança ou não. Ninguém se importa." 


A 5 km da Praça dos Três Poderes, pessoas instalaram barracas no gramado que beira a via de acesso à L4 Imagem: Yasmin Velloso/UOL

A lei da sobrevivência Durante o dia, é importante ter quem fique na barraca mais próxima ao asfalto, pois eventualmente um carro encosta e alguém deixa cobertores, cesta básica, um dinheiro. À noite, ficam mais para dentro, para que a distância do meio-fio dê um pouco de proteção. Um carro estacionou deixando mantas recém-compradas, enquanto o TAB estava lá. "Olha! Chegou uma benção! Vamos tentar uma para a Lucilene. Ela está banhando", disse Nilva. Muitas vezes, quem para dá doações contadas para quantas pessoas conseguir visualizar — e elas têm de argumentar que há mais gente, por exemplo apontando para onde é o banheiro improvisado. "Essa é a lei da sobrevivência da gente." 

No dia anterior, uma mulher deixou um velocípede, conta Edilene. Pouco depois, pai e filho de 2 anos andavam testando a novidade e um carro avançou na direção deles. "Pra matar mesmo. A gente tem é medo desse povo rico."
 "Eles acham que aqui é tudo 'nóia', traficante, ignorante, analfabeto. Bicho", conta Edilene. "Infelizmente funciona dessa forma, mas a gente é ser humano. Vive na pele [a pobreza]. Quem nunca viveu não sabe. E não quer saber.".


Giovana Silva, 22, mora na rua perto do campus da UnB com a filha de 3 meses Imagem: Yasmin Velloso/UOL 

Para elas, ali no gramado há mais humanidade que qualquer ambiente acarpetado. Dividem toda a comida que têm: arroz, feijão, ovo, tudo é dividido entre conhecidos e desconhecidos. O cobertor que ganharam num dia, no outro dão a quem pede alegando não ter nenhum. "Faz uns dois ou três anos que tudo piorou. Tem mais gente aqui. Tudo mais caro. Desemprego. E os ataques aumentaram", relatam..

Se para um carro comum, as pessoas correm e se amontoam nas janelas para ver se há alguém disposto a doar. Entretanto, elas também estão prontas para correr na mesma velocidade, para longe, carregando o que podem, caso o veículo seja um carro oficial, com ordens de desmontar acampamento. 
Se um carro oficial quase nunca traz boa nova, ir até a Praça dos Três Poderes tampouco é boa ideia. "Se for é sabendo que vai apanhar, que nem os índios. E levar spray de pimenta na cara. Vou fazer o quê lá? Já estou velha para apanhar." Dado o histórico, também não é prudente ir longe. "Já levaram até o carrinho da minha cunhada. A gente é chamado de vagabundo, mas aí levam embora o carrinho de reciclagem", dizem, referindo-se a operações de agências do governo do Distrito Federal. 

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Tem gente boa, mas tem outros que humilham a gente no meio da rua. Já chorei muito' 
Imagem: Yasmin Velloso/UOL 

Tão perto e tão longe do poder 

Nilva vai às portas dos mercados do Plano Piloto pedir comida, mas pedir também ficou mais difícil nos últimos tempos. "Semana passada, uma mulher disse: 'A senhora é nova, por que não vai procurar serviço?' Respondi: 'Se a senhora me der um trabalho, varrer seu chão, limpar seu banheiro, começo agora'. Meu marido ainda disse: 'Se quiser que eu pegue sua bosta e me pagar por isso, eu vou agora'. Ela ficou envergonhada e a amiga dela deu R$ 50 
pra gente", lembra. "Não estou pedindo porque quero, não, mas porque não tenho oportunidade de serviço. Não vou entrar nesse mercado e roubar para mim, meus filhos, meus netos. Estou te pedindo. Se você tiver mais do que eu, talvez possa me dar um pouco. Se não tiver, não precisa falar assim, não." 
Luzia Paes Cavalcante, 68, se fixou no acesso à L4 com a filha Geronita, 32, que é cadeirante e tem problemas de cognição. Ela tem uma casinha em Goiás, mas passa parte da semana em Brasília para seguir o tratamento de Geronita, desde que a filha tinha 7 anos. Na capital, o hospital tem uma van que busca as duas. Quando passa um tempo longe da barraca, os pertences delas ficam todos por ali — não veem risco de perdê-los, a menos que uma autoridade as visite. "Leva até documento da gente. Leva tudo, tudo. Deixa nada, só o espaço, limpo, vazio." 


Luzia Paes Cavalcante, 68, mora perto da L4, em Brasília, com a filha Geronita, 32 Imagem: Yasmin Velloso/UOL 

Luzia não teve Bolsa Família, Auxílio Brasil ou qualquer outro benefício do governo federal, a não ser o benefício da filha. Já trabalhou na roça, "no maracujá na Bahia, maracujá e tomate em Brasília, na pimenta, quebrando milho, catando feijão, cortando arroz", exemplifica. "Tudo eu já fiz. Mas hoje não consigo mais. E tem a minha filha pra cuidar." 

Morando acima da UnB, Raquel Santos Rocha, 18, gostaria de voltar a estudar. Ela quer ser cirurgiã, ou música. "Quero é fazer a diferença na vida das pessoas", diz, abraçada a seu violão, que ganhou ao levar ao farol uma plaquinha pedindo ajuda para obter um instrumento. 
A mãe de Raquel morreu de câncer quando ela tinha 6 anos, conta. O pai, de cirrose, quando ela fez 11. A partir daí, ela morou com a avó, uma tia, o irmão e outra tia, que tem um barraco na ocupação a uns metros dali. Elas moravam no Jardim Ingá, em Luziânia, no entorno do DF, e um incêndio destruiu tudo que tinham. As duas seguiram para a Asa Norte, onde poderiam reunir material de reciclagem. 

Raquel junta latinhas perto dos mercados, onde pede ajuda a a quem passa. "Tem gente boa, mas tem outros que humilham a gente no meio da rua. Já chorei muito com as palavras que me dizem." 
"Vai trabalhar!" é uma frase muito ouvida por ela. "Como se fosse fácil", sussurra. E explica que, para trabalhar de doméstica, precisaria ser recomendada por alguém, o que ainda não conseguiu.

Raquel também ajuda a amiga Giovana Silva, 22, com a bebê de 3 meses, Ágata Mirele. Giovana diz que responde afronta com afronta. "Se a pessoa te nega um copo d'água, fica olhando com cara ruim, me xinga, xingo de volta. Um copo d'água, sabe? Não lêem a Bíblia? É de igual para igual", diz. 

Elas dizem temer a ação das "autoridades" — quem tem poder, grande ou pequeno, o fiscal com crachá no pescoço, o fardado ou o engravatado. "Eles vêm com carro de polícia, trator, caminhão, até ônibus pra levar tudo que a gente tem." Ou passam com insultos e agressões e vão embora.

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