sábado, 5 de novembro de 2022

A alegria é senhora: sobre o sentimento de tirar do poder um demônio


JULIÁN FUKS

A alegria é senhora: sobre o sentimento de tirar do poder um homem atroz

Julián Fuks

Colunista do UOL

05/11/2022 06h00

Aquele exato momento de felicidade ninguém mais nos tira, aferrou-se no tempo, pertence agora à história. Uma multidão embevecida de alegria, separada por paredes permeáveis, explodindo em canto por toda parte, como se fosse o próprio júbilo a expulsar do poder o homem atroz. Em cada riso a conflagração de outro riso, há muito prometido. Em cada abraço a libertação do que antes só podia ser tímido, mera promessa desse abraço vindouro. Eis que o futuro nos alcançava, o futuro respondia por fim a todo o nosso anseio, à nossa avidez por algum alívio, o futuro nos devolvia o fôlego para o grito tantas vezes contido.

Pai, nunca vi os adultos tão felizes, foi o que disse a minha filha, e em seus olhos vi também uma felicidade genuína, e tive certeza de que ela compreendia. Percebi ali, e voltei a perceber dias adentro, o enorme peso que há tempos nos oprimia, a tristeza silenciosa que se escondia em cada gesto, que discretamente nos consumia. Sobre tantas casas essa nuvem sinistra lançava sua sombra, e agora subitamente o céu se abria, e mesmo a manhã nublada de segunda nos trazia um horizonte límpido. Por anos, ser feliz neste país pareceu um ato insensato, uma lamentável expressão de desconexão e insensibilidade. Agora, pelo tempo que durar, dá-se o contrário: estar feliz torna-se o ato sensato, a expressão mais justa do sensível.

Claro, ninguém deixará de notar as tensões que ainda grassam no país, o choro dos equivocados, a indignação dos brutos, dos que insistem em tentar impor sobre nós o seu arbítrio. O Brasil não se cansa de mostrar sua face bárbara, e isso já poderia ser razão para reforçar pensamentos infelizes. Mas neste momento a equação parece invertida: o inconformismo é a máxima expressão de desconexão com o real, a mostra maior de alienação, e aos razoáveis nos resta a calma, o equilíbrio e esta felicidade empedernida. Em país algum será imaginável uma felicidade imaculada e plena: aqui há de nos bastar este núcleo de alegria intocada, mesmo que envolto numa casca de ocorrências tristes.

Por longo tempo, jovem demais, estranhei a visão de felicidade que prevalecia em nossa cultura, a recorrência da noção de uma felicidade efêmera, momento fugidio que mal faz estremecer a dor contínua. "A tristeza é senhora", cantava João Gilberto, e eu cantava junto tentando acompanhar seu ritmo impossível, mas acompanhando menos ainda o sentimento. Creio ter sido esta a primeira metáfora que admirei na vida, e a primeira que descartei como imprecisa: "A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor. Brilha tranquila, depois de leve oscila, e cai como uma lágrima de amor." Essa mesma lágrima, essa lágrima de orvalho e de amor, não seria, pelo contrário, a mais linda expressão da tristeza, ela sim breve e lírica?

Até ali a felicidade me parecia algo de mais amplo e mais calmo, a vasta floresta que contém essa flor triste, por exemplo, apenas alterada por sobressaltos passageiros. E então eu vi, e envelheci. Nestes últimos anos, nem sei dizer quantos, testemunhei muito mais do que gostaria a incontível selvageria do país, e entendi enfim o que tantos poetas diziam, percebi como a tristeza pode derrubar a floresta e se fazer senhora. É essa selvageria o que condena a felicidade à impermanência, o que a torna tão inconstante, esquiva, inapreensível.

Mas agora não sei, sinto que rejuvenesço, e me encho ainda uma vez de otimismo e de imagens ingênuas. Nesse novo futuro que se insinua à nossa frente, ainda aberto e indefinido, me pergunto se não poderíamos construir um país em que a tristeza se mostre instável e impermanente, e a alegria seja senhora. Se precisarmos de algum marco temporal que funde essa nova época, sempre teremos a noite inesquecível de domingo, a noite em que a alegria derrotou um tirano e o relegou ao silêncio, e o devolveu à sombra de onde ele nunca deveria ter saído.

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