Não há mais dúvida sobre a importância das políticas públicas de cultura para o país, tanto do ponto de vista estético e simbólico quanto das perspectivas do seu desenvolvimento. Desde os anos 80, quando o Ministério da Cultura foi criado, vimos superando a insignificância a que a cultura era relegada nos governos da direita mais conservadora e a função auxiliar no projeto midiático que assumia nos governos da direita neoliberal.
Os militantes do Partido dos Trabalhadores têm uma grande responsabilidade sobre esse avanço, pois foi nos governos petistas que se iniciaram experiências e se produziram as reflexões mais consistentes sobre as políticas culturais. Foi exatamente em governos petistas, de diferentes níveis, que a cultura foi guindada ao plano das políticas públicas, este, por si só, um avanço no plano conceitual e no plano da governança.
A percepção dessa importância não avança apenas em virtude das ações empreendidas nos governos, mas também pela produção empreendida pelo PT e por petistas no campo das idéias. Neste caso, é impossível não lembrar o conceito basilar de Cidadania Cultural formulado pela professora Marilena Chauí, ex-secretária de cultura de São Paulo, que serve ainda hoje de chão para todas as formulações de políticas culturais de esquerda.
Outro conceito importante para nossa história é o de Sistema Nacional de Cultura, a proposta de uma articulação federativa em rede – que deveria interligar-se com novas redes – que poderia garantir a autonomia e liberdade dos processos criativos e distributivos do mercado e da sociedade justamente por lhes conferir a segurança institucional que tanto falta ao campo da Cultura.
Há conquistas que se inscrevem para além das teorias, inscrevendo-se no plano de deliberações internacionais. Destacaria aqui a consolidação do conceito de diversidade cultural, como algo que deva ser promovido e protegido, a premissa de que cabe ao Estado reconhecer e apoiar as atividades culturais desenvolvidas pela sociedade na plenitude da sua liberdade.
Aqui não há dúvidas de que os avanços teóricos e institucionais devem ser amparados pelo enfrentamento de desafios conjunturais e estruturais. Não nos iludamos: sempre há desafios e sempre há obstáculos a superar. No momento, é preciso circunscrevê-los, mas não reduzi-los.
Observemos alguns elementos. No Brasil, pouco se avançou na consolidação de políticas para o conjunto da Economia da Cultura, permitindo que ela continue tão concentrada e dependente do Estado como sempre foi e, o mais preocupante, sem oferecer à sociedade muitos avanços na melhoria das condições para a produção e difusão simbólica no Brasil. Não podemos ignorar, por outro lado, o acirramento de discursos racistas, machistas, homofóbicos e de todo tipo de preconceitos que parecem crescer na sociedade brasileira. É inevitável constatar que não conseguimos até agora gerar condições para que os discursos, os processos criativos e as estéticas baseadas na solidariedade, no respeito ao diferente e na defesa da liberdade consolidassem seus espaços.
Estamos diante de uma situação nova no país. Pela primeira vez combinamos democracia, crescimento econômico e redução das desigualdades. Nunca havíamos vivido tal experiência, e isso não pode ser minimizado ou esquecido. Esta combinação carrega uma carga de valores que deve acompanhar todas as ações do governo federal neste período, sobretudo por considerarmos que o Presidente Lula conseguiu ver eleita a sucessora de sua preferência.
Como já se destacou, é no plano dos valores que está posta a grande a questão que determinará o futuro do Brasil. Por isso, não basta controlar a inflação e promover o aumento real dos ganhos das populações mais pobres. Reduzir-se a isso seria exercitar as experiências mais conservadoras de alguns governos que, sem ambições que sobrevivam para além do óbvio, contentam-se em liderar uma espécie de melhorismo, ignorando perspectivas emancipatórias da população.
O governo brasileiro, assim como todos os governos de esquerda, em qualquer nível, está diante de um desafio que vai além desse óbvio: como organizar suas políticas públicas de maneira a estimular a emersão de uma visão de mundo que esteja ancorada para além dos interesses do capital e das estratégias consumistas do mercado? Como fazer isso garantindo liberdade de expressão, defesa da competição, respeito às minorias e aos direitos coletivos e individuais, a promoção da diversidade cultural e, ao mesmo tempo, reduzir desigualdades, induzir o fortalecimento de nossa economia e desempenhar um papel internacional que vá além de protocolares defesas dos Direitos Humanos?
Muito do que foi dito aqui poderá ser desdobrado em vários documentos, mas há algo comum, que é o fato de que, para a esquerda, todo ato de governar deve ser praticado como um projeto cultural. O governo da presidenta Dilma nasceu com o compromisso de fortalecer valores como a solidariedade, a paz e o respeito à diversidade, sob pena de deixar aprofundar na sociedade esse discurso segregador e violento que a direita brasileira há décadas tem conseguido consolidar.
Para que o compromisso assumido com a erradicação da miséria e elevação econômica de nossa sociedade possa se alicerçar sobre outros valores e dar-se num ambiente no qual haja o contraponto de outra visão de mundo, é preciso que haja a manifestação de produções simbólicas de novos tipos. Caso contrário, a produção cultural se resumirá, inocente e utilmente, a um tipo de entretenimento despretensioso e descomprometido com as camadas mais profundas da percepção.
Do ponto de vista das políticas públicas de cultura, a miséria é a escuridão da ignorância provocada pela falta de acesso aos meios de criar e compartilhar estéticas, discursos e valores. Miséria é a situação de dependência irrestrita em relação ao Estado em que vivem praticamente todos os agentes que operam nos diversos segmentos da economia da Cultura. É também a perversidade do isolamento e da dependência na qual sempre estiveram gestores municipais e estaduais de cultura, relegados a disputar as exíguas verbas dos programas oficiais quando, na verdade, são eles que conhecem e percebem mais claramente as efetivas necessidades do campo da Cultura em um país tão diverso e tão complexo como o Brasil.
No âmbito das políticas públicas de cultura, superar a miséria não é apenas tornar o sujeito mais capaz de consumir e acessar bens e serviços culturais, mas também torná-lo mais autônomo para produzir e compartilhar seus próprios conteúdos e significados, o que significa dizer que superar a miséria é ampliar e dar plena liberdade aos processos e procedimentos que costumamos enfeixar sob esse conceito de Cultura Digital.
Considerando o tamanho do desafio auto-imposto pela presidenta Dilma, talvez seja correto dizer que os desafios que se apresentam para o Ministério da Cultura se dividem em dois eixos.
O primeiro diz respeito a essa disputa de valores que deverá ser travada na sociedade brasileira, sendo necessário garantir que todas as vozes e todas as idéias possam circular com liberdade, garantindo a diversidade e a pluralidade do debate – ainda que saibamos que isso não se dá de uma hora para a outra, nem se estabelecerá como por mero esforço das vontades.
O segundo diz respeito à necessária consolidação dos diversos setores das diversas economias da cultura, ou então, de uma economia da cultura diversa, que contemple suas múltiplas dimensões, transitando desde a economia de mercado até a economia solidária, passando por uma radical mudança de paradigma nas políticas de fomento que devem migrar da base conceitual de fomento à obra para a base conceitual de fomento aos processos produtivos.
Para que seja possível enfrentar esses desafios, é necessário alterar drasticamente algumas das condições historicamente vividas pelo setor cultural no Brasil, assim como é necessário que cada gestor e cada militante procure dar sua contribuição para além das polêmicas, sejam elas antigas ou atuais. Nem as feridas atuais, nem as cicatrizes anteriores devem nos servir de limite.
Glauber Piva é sociólogo.
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