Mônica Castagna Molina, diretora do Centro Transdisciplinar de Educação do Campo, da Universidade de Brasília (UnB)
A taxa de analfabetismo no campo chega a 23,3%, três vezes maior do que a das áreas urbanas, que é de 7,6%. Mônica Castagna Molina, diretora do Centro Transdisciplinar de Educação do Campo, da Universidade de Brasília (UnB), afirma que existe um abismo entre a situação educacional do campo e a da cidade.
Nesta entrevista, ela faz um retrato do ensino rural no Brasil e avalia que, com políticas públicas adequadas e o enfrentamento das questões fundiárias e ambientais, o território rural pode se transformar em um importante espaço de geração de emprego e renda, de novas relações sociais e com a natureza, e de promoção de inclusão e cidadania.
Mobilizadores COEP - Quantas crianças e jovens atualmente estudam na zona rural no Brasil? Qual é a porcentagem em relação às que estudam nas cidades?
Mônica Castagna Molina: De acordo com o Panorama da Educação do Campo, publicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e Ministério da Educação (MEC), em 2007, 71,5% dos alunos do campo estão matriculados de 1ª a 4ª série, ou seja, cursando as séries iniciais do Ensino Fundamental. A rede de ensino da educação básica da área rural, de acordo com os dados levantados no Censo Escolar 2005, é constituída por 96.557 estabelecimentos de ensino, o que representa cerca de 50% das escolas do país (207.234). Ela atende a mais de 5 milhões de alunos no Ensino Fundamental, que representam 17,3%, e oferece, prioritariamente, as séries iniciais do Ensino Fundamental. As séries finais, de 5ª a 8ª, atendem a mais de 1,5 milhão de alunos, ou 28,5%. Ainda de acordo com o Censo Escolar de 2005, as 1.377 escolas rurais de ensino médio atendem 206.905 alunos, o equivalente a 2,5% da matrícula nacional nesse nível de ensino.
O estudo mostra que, na faixa de 10 a 14 anos, 95% das crianças da área rural e 97% das da área urbana encontram-se na escola. Por outro lado, o estudo assinala que, enquanto na área urbana 50% das crianças que frequentam a escola estão com atraso escolar, na área rural esse contingente atinge 72% dos alunos. O Brasil é um país de grandes desigualdades sociais, e o direito à educação não é assegurado de forma igualitária a todos os cidadãos.
Como resultado, temos uma taxa de analfabetismo de 23,3% no campo, três vezes maior do que a das áreas urbanas, que é de 7,6%. Paralelamente, a escolaridade média das pessoas com mais de 15 anos no meio rural é de 4,5 anos; no meio urbano chega aos 7,8 anos.
Mobilizadores COEP - Qual é o retrato recente do ensino rural no Brasil, com relação à infraestrutura, condições de ensino-aprendizagem e capacitação dos professores? De que forma esta realidade interfere no desempenho dos alunos?
Mônica Castagna Molina: Pode-se dizer, tamanha a precariedade, que ainda não se consolidou, de fato, um sistema público de educação no campo. Os educadores, em sua maioria, não têm a titulação legal para o trabalho nas séries que atuam, não possuem vínculo efetivo com as escolas onde lecionam, já que não são concursados, mudam várias vezes de escola num mesmo ano letivo, têm baixíssima remuneração e condições de trabalho muito difíceis para garantia de um aprendizado com êxito. Além disso, existe um abismo entre a situação educacional do campo e a da cidade. A realidade do ensino na escola rural brasileira é a de escolas que não possuem biblioteca (75%), laboratório de ciências (98%), acesso à internet (92%), laboratório de informática (90%) e nem energia elétrica (23%). Isso se reflete na qualidade da oferta dos serviços prestados e dificulta o acesso à educação escolar no campo.
Mobilizadores COEP - As políticas públicas brasileiras na área educacional não priorizavam um ensino voltado para os anseios do campo. Por que isso acontece num país que, há até pouco tempo, tinha a maior parte de sua população vivendo na zona rural?
Mônica Castagna Molina: Os gestores públicos ainda entendem o espaço rural como inferior, destinando a ele o que sobra do espaço urbano. Isto funciona não só com o mobiliário para as escolas do campo mas, também, com os meios de transporte e, pior, com os educadores, cuja designação para estas escolas é encarada, muitas vezes, como punição.
Portanto, mudar esse quadro e fazer cumprir a legislação conquistada exige continuidade da organização dos sujeitos coletivos do campo - camponeses, agricultores, assentados; pressão sobre os órgãos responsáveis; ampliação do imaginário da sociedade sobre a importância do desenvolvimento do campo e da garantia dos direitos aos seus moradores, para efetiva promoção da igualdade e da justiça social no país.
Mobilizadores COEP - Nas duas últimas décadas, pelo menos em termos de legislação, houve avanços na discussão do tema educação rural, como cita a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996; e também com a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), pelo MEC, em 2004. Qual é o papel desta legislação? Quais foram os avanços reais?
Mônica Castagna Molina: Em 2004, o MEC criou a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), que tem entre suas atribuições a de gerenciar diversos programas voltados à melhoria das condições de ensino no meio rural. Um deles é o Escola Ativa, com metodologia voltada para salas multisseriadas - existem mais de 50 mil escolas no país que têm uma sala só, reunindo crianças de diversas idades. Outra iniciativa é o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (Procampo), que tem como objetivo investir na formação em serviço de professores dos anos finais do Ensino Fundamental - principalmente os que têm o Ensino Médio e não frequentam uma universidade.
O estabelecimento dos marcos legais é um passo importante no cumprimento do direito à educação dos povos do campo. Mas não basta. É necessário forte trabalho da sociedade civil organizada e do Ministério Público para pressionar os responsáveis do Poder Executivo, nas diferentes instâncias (federal, estadual e municipal), a garantir a oferta da educação escolar e efetivar este direito aos camponeses. Um dos maiores problemas é a ausência da oferta educacional. Apenas os anos iniciais do Ensino Fundamental recebem cobertura, ainda que precária. É imprescindível ampliar a presença do sistema educacional no campo, com a construção de escolas e com o estabelecimento de um corpo permanente de educadores.
Mobilizadores COEP - Em 2010, a instituição do decreto 7.352 transformou o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) em política pública. O que muda a partir desse decreto?
Mônica Castagna Molina: O programa começou com a demanda de alfabetização de jovens e adultos, até porque esse era um dos grandes problemas detectados pelo I Censo Nacional da Reforma Agrária, realizado em 1996. Ele revelou que, à época, 43% das pessoas nas áreas de assentamentos eram analfabetas. Por isso, o programa começou com a prioridade de ofertar alfabetização a jovens e adultos e, simultaneamente, formar educadores das próprias áreas de Reforma Agrária para atuar nesses processos de escolarização com mais qualidade e regularidade.
Ao longo de mais de 12 anos do programa, cerca de 500 mil trabalhadores rurais passaram por processos de escolarização nos diferentes níveis de ensino, da alfabetização à conclusão do ensino fundamental e médio, aos cursos técnicos e profissionalizantes e aos cursos superiores. São mais de 60 universidades parceiras, com algo em torno de 200 convênios celebrados. Além disso, temos que considerar que, pela primeira vez na história do país, uma política pública é elaborada e executada a partir do protagonismo dos sujeitos coletivos organizados do campo.
Esse talvez vá ser um dos ricos legados do Pronera como política pública de Educação do Campo: o conjunto de suas ações impõe mudanças no padrão de relação entre sociedade e movimentos sociais, acumulando forças no sentido da democratização do Estado. Também amplia a esfera pública na sociedade brasileira, entendendo esfera pública exatamente como o espaço onde as decisões políticas são tomadas, por meio do debate crítico entre cidadãos que, neste espaço, exercem a condição de igualdade formal assegurada pelos princípios democráticos.
Mobilizadores COEP - Na década de 1980, os professores saíam das cidades para lecionar no campo. Agora, muitas crianças e jovens saem, diariamente, da zona rural para irem estudar nas cidades próximas. O que acha desta mudança? É a situação ideal?
Mônica Castagna Molina: A maior parte dos municípios brasileiros não desenvolve ações específicas em relação à provisão educacional nas zonas rurais, seja para filhos de agricultores, de assentados da reforma agrária ou de indígenas. Para além das cidades, persiste a estratégia da nucleação, que consiste na desativação de escolas rurais menores e na criação de escolas-polo, com o transporte das crianças para essas escolas, ou, simplesmente, o transporte das crianças que residem nas áreas rurais para escolas existentes no núcleo urbano.
Existem crianças, no Brasil, que passam cerca de quatro horas se locomovendo para ir e vir da escola. Além do perigo, devido às condições de transporte, essas crianças perdem muito do vínculo com suas famílias. A base da agricultura familiar está justamente nas relações familiares e no aprendizado do processo de trabalho na sua comunidade, mas essas crianças ficam mais tempo fora do que em casa, e isso vai desenraizando-as.
Além de problemas de ordem logística e financeira, essa estratégia parece gerar também problemas pedagógicos, particularmente no que concerne à qualidade da escola e do ensino e às relações do currículo com valores culturais das comunidades envolvidas.
Mobilizadores COEP - O que você considera importante para a valorização do ensino no campo? Como podemos fortalecê-lo?
Mônica Castagna Molina: Várias frentes de intervenção são necessárias para melhorar a qualidade do ensino no campo. Considero de extrema importância a ampliação das políticas de formação docente para o meio rural. Apesar da conquista, nos últimos anos, de políticas públicas específicas de formação de educadores, como, por exemplo, o Programa Nacional de Apoio às Licenciaturas em Educação do Campo (Procampo), é preciso, urgentemente, ampliar sua abrangência. Atualmente, estão em formação no Procampo cerca de dois mil educadores. Há uma demanda de 178 mil docentes atuando nas escolas do campo sem nível superior. Portanto, dar escala às estratégias formativas específicas aos educadores do campo é vital para melhorar a qualidade do ensino nesse território. Além da formação, a melhoria das condições de atuação desses docentes também é outro ponto importante para garantir a qualidade do ensino.
Suprir as condições de falta de infraestrutura adequada é passo importante para a garantia de parte da qualidade do ensino no campo. Mas essas mudanças, ainda que de grande magnitude, não serão suficientes. Faz-se necessário um profundo trabalho também nos processos de participação e protagonismo dos estudantes e suas comunidades nas escolas do campo. A desprivatização desses espaços escolares, no sentido da promoção de sua independência dos políticos locais, é de suma importância, pois, caso contrário, ainda existirão gestores e educadores descomprometidos com os sujeitos do campo.
A presença de educadores da própria comunidade e a participação mais intensa dessa, nas escolas do campo, são fatores decisivos para enfrentar um dos grandes desafios desses espaços formativos: a transformação dos processos de produção e uso do conhecimento a partir do protagonismo de seus educandos e das condições e contradições sociais nas quais vivenciam seus processos de escolarização.
Mobilizadores COEP - Qual a importância de uma educação direcionada para a população rural? Até que ponto pode ajudar a fixar o homem no campo e estimular a geração de emprego e renda no meio rural?
Mônica Castagna Molina: Se os jovens do campo quiserem continuar suas trajetórias de escolarização, têm que sair do campo. Essa carência da oferta da educação básica, aliada a fatores mais graves, como a contínua concentração fundiária provocada pelo modelo agrícola atualmente hegemônico, favorece o êxodo e a consolidação do que, em Sociologia, chamamos de ruralidade de espaços vazios, uma ruralidade sem sujeitos, sem gente.
Ao contrário disso, precisamos trabalhar na construção de estratégias que possibilitem a permanência da juventude no meio rural e que garantam finalidades relevantes para o campo no projeto de nação. Com políticas públicas adequadas e com o enfrentamento das questões fundiárias e ambientais, é possível trabalhar na perspectiva de transformar o território rural em importante espaço de geração de emprego e renda, de novas relações sociais e com a natureza, um espaço de promoção de inclusão e cidadania.
A Educação no campo precisa valorizar ainda mais a realidade de quem vive e trabalha na terra, fortalecer o vínculo do professor com a escola e oferecer mais vagas tanto na segunda etapa do Ensino Fundamental como no Médio. O campo não é apenas um espaço de produção agrícola, nem somente um campo de negócios. E essa é uma das marcas mais fortes da Educação do Campo. Ela pensa no campo, de forma mais ampla, como um verdadeiro espaço de produção de vida.
Mobilizadores COEP - Existem muitos ‘Brasis’ dentro do território brasileiro. Quais são as diferenças regionais que devem ser levadas em consideração na hora de formular políticas públicas educacionais?
Mônica Castagna Molina: As diferenças regionais devem sim ser levadas em consideração, porém o mais importante é o cumprimento das disposições constitucionais e de garantia de direitos. Neste sentido, são importantes os debates com a perspectiva de ampliar os mecanismos de construção e implantação de um Sistema Nacional de Educação. O regime de colaboração entre União, estados e municípios, que pouco tem de “colaborativo”, não pode continuar servindo como mecanismo de escudo e desresponsabilização da garantia do direito à educação escolar às crianças e jovens do campo.
Por Flávia Machado
Fonte: Mobilizadores Coep (Publicado em 04/05/2011)
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