Tecnologia, na minha forma de ver, é tudo aquilo que o ser humano inventa para tornar sua vida mais fácil ou mais agradável. Ela inclui coisas tangíveis (hardware), como equipamentos, instrumentos e dispositivos diversos, e coisas intangíveis (software), como linguagens, sistemas numéricos, sistemas de notação (musical, por exemplo), métodos, procedimentos, princípios, regras de organização, etc. Assim, a linguagem verbal, que inclui a fala e a escrita, é tecnologia. Comunidade, embora possa parecer estranho a alguns, também é tecnologia.
Olhando o desenvolvimento da espécie, houve época em que os seres humanos se comunicavam por gestos, expressões faciais e grunhidos (como outros animais), não pela linguagem verbal, que foi uma invenção que surgiu em tempo oportuno. Primeiro o ser humano inventou a linguagem oral – a fala; depois de muito tempo, a linguagem escrita – o texto. Até hoje, porém, há sociedades que ainda vivem numa cultura exclusivamente oral, desconhecendo a escrita.
Olhando a questão do ponto de vista do desenvolvimento do indivíduo, nascemos sem saber falar, ler e escrever. Aprendemos primeiro a falar e, depois de algum tempo, a ler e a escrever. Alguns indivíduos, entretanto, passam a vida inteira sem aprender a ler e a escrever.
Embora, hoje, possa parecer natural viver em ambientes comunitários (cidades, bairros, condomínios), a história nos mostra que houve época em que o ser humano vivia como nômade, vagando de lugar em lugar em pequenos bandos familiares, e vivendo da caça, da pesca ou de árvores frutíferas, onde as encontrassem, não em comunidades semelhantes às que temos hoje, sedentárias, com divisão de trabalho, mercado para a troca de bens e serviços produzidos por cada um, forma própria de organização e governo, etc. Estas só foram inventadas a partir de determinado momento na evolução da espécie humana.
No nível macro, as comunidades de tipo mais genérico, criadas para atender aos vários interesses comuns ou afins de pessoas que não são ligadas por laços de sangue, custaram para aparecer.
No nível micro, levou mais tempo ainda para que os seres humanos inventassem comunidades de finalidade específica – como, por exemplo, as de aprendizagem (tanto as comunidades de artesãos e aprendizes como as chamadas em Inglês de communities of scholars).
Mas o que tudo isso tem que ver com a educação? Tem bastante.
Por muito tempo, a fala e a comunidade (em especial a comunidade familiar estendida) foram as principais tecnologias usadas na educação. Antes da invenção da escrita alfabética e da consequente invenção do texto, educava-se em família, com as pessoas vivendo juntas, conversando, explicando, mostrando como fazer as coisas.
Fora do âmbito familiar, Sócrates, que considero o maior educador que tivemos, usava apenas a fala como tecnologia no seu processo pedagógico focado no diálogo. Dispensava até mesmo a comunidade. Seus alunos vinham a ele individualmente e ele lidava com eles de forma personalizada, um a um. Apenas conversava com eles.
Pelo menos três características do método socrático são importantes aqui. Primeiro, Sócrates educava na praça – no lugar em que as pessoas viviam, não em um local separado, segregado da vida do dia a dia. Segundo, a conversa era centrada nos interesses dos seus interlocutores: não era pautada pelos interesses do mestre. Terceiro, os alunos tinham participação ativa no processo. Podemos dizer (usando conceitos atuais) que, com Sócrates, temos uma educação inserida na vida real, personalizada, centrada nos interesses dos alunos e focada na sua aprendizagem ativa e interativa.
É curioso (e até certo ponto triste) que não tenha ocorrido a Sócrates criar uma comunidade de alunos interessados nas mesmas coisas e questões para que eles se beneficiassem não só da interação com ele, o mestre-parteira, que os ajudava a dar à luz suas próprias ideias, mas também do diálogo uns com os outros – ou seja, da aprendizagem colaborativa. Tanto quanto sabemos, Sócrates nunca criou uma comunidade de aprendizagem, como uma escola…
É também curioso que Sócrates tenha optado por não usar, e mesmo rejeitar, os recém-aparecidos textos (livros manuscritos) na educação de seus discípulos. Na verdade, criticou o uso do texto como tecnologia educacional: o livro não traz nenhum benefício e prejudica a aprendizagem, enfraquecendo a memória e substituindo o diálogo…
É verdade que, logo depois de Sócrates, e sob a liderança de discípulos seus, apareceram liceus e academias, ou seja, escolas mais ou menos parecidas com as que hoje temos. Isso indica que, a partir dessa data, comunidades específicas de aprendizagem, compostas de pessoas com interesses de aprendizagem comuns ou afins, apareceram no cenário educacional. Essas comunidades de aprendizagem fizeram uso bastante eficaz da tecnologia da fala.
No período pós-socrático, e por muito tempo depois, a educação fez uso quase que exclusivamente das tecnologias da fala e da comunidade. No entanto, porque houve necessidade de racionalizar ou otimizar o processo, um mestre passou a se ocupar de vários alunos – e, com isso, perderam-se algumas características importantes da pedagogia socrática: a personalização, o foco no aluno e nos seus interesses, o diálogo… E a educação saiu da praça e passou a ter lugar dentro da escola, perdendo contato com a vida real.
Dessa forma, gradativamente, processos vitais e processos cognitivos foram se distanciando, a educação foi se despersonalizando, o foco foi se transferindo do aluno e seus interesses para o professor, seus interesses e especialidades, e a aula, unidirecional, não dialógica ou “discutitiva”, passou a ser a metodologia favorita, em lugar do questionamento dialógico (ou do diálogo questionador) de Sócrates. E, assim, os alunos deixaram de dar à luz as próprias ideias para adotar as ideias dos mestres…
De Sócrates até a invenção da prensa de tipo móvel, no século XV da era cristã, o texto foi muito pouco usado na educação. Livros manuscritos existiam, mas eram poucos e, por isso, tão preciosos que ficavam trancados (até mesmo acorrentados) em bem guardadas bibliotecas (vide O Nome da Rosa). Quase não eram usados na educação.
Com o aparecimento do livro impresso, a partir de 1455, isso mudou, e o uso do texto se disseminou rapidamente, o livro passando, gradualmente, a competir com a fala pela condição de principal tecnologia utilizada na educação. Mas a comunidade continuou a ocupar um papel totalmente secundário. Os dois, o livro e a fala, encontraram uma forma pacífica de convivência.
Com o livro impresso surgiu (a partir da Reforma Protestante) a escola moderna, organizada em torno de um currículo definido por uma autoridade central, com os professores ocupando o papel de protagonistas no palco principal. A vida escolar dos alunos passou a ser totalmente regimentada, com pouca ou nenhuma liberdade. Seu ofício passou a ser ficarem quietos, prestar atenção ao que dizia o professor, anotar os pontos relevantes e fazer, no tempo livre, até mesmo em casa, as leituras exigidas ou recomendadas pelo professor. Mais ou menos três séculos depois surgiu a escola pública, de massa, controlada pelo Estado, que adotou o mesmo modelo.
A escola moderna é, certamente, uma comunidade de aprendizagem. No entanto, a comunidade existente na escola moderna é, em grande parte, criada por imposição, não pela união de interesses comuns e afins. Nela, o protagonismo estudantil, a personalização da educação e o método dialógico, que imperaram sob Sócrates, se perderam totalmente, e o modelo de educação se consolidou.
As Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) digitais, centradas inicialmente no acesso à informação escrita, e, logo depois, na comunicação um-para-muitos (o Telecurso, o Ensino a Distância, o site na Web, etc.), se prestaram muito bem, num primeiro momento, a reforçar o paradigma educacional da escola moderna, centrado na transmissão de informações de um (o mestre) para muitos (os alunos). Elas foram usadas para dar suporte e sustentação para esse modelo tradicional, bem como para estendê-lo cuidadosamente.
O computador, o projetor multimídia, o telão, a lousa eletrônica e até mesmo a Internet (especialmente a Web) reforçaram o modelo, dando-lhe maior eficiência. A comunicação continuava a ser de um para muitos.
O Ensino à Distância permitiu que o alcance do modelo fosse ampliado, levando ao aparecimento de telecursos, teleaulas, ensino virtual, etc. – atividades que, exceto pela distância, eram bastante semelhantes às aulas presenciais.
Mas, um dia, surgiram as redes sociais, das quais Facebook é o exemplo mais completo. Ainda não sabemos, com precisão, como as redes sociais vão afetar a educação. O estabelecimento escolar tem resistido a elas, e (de sua perspectiva) com boa razão, porque elas representam uma ameaça significativa ao paradigma educacional vigente.
Vejamos por quê.
a) A rede social é uma ampla comunidade genérica que permite a criação de inúmeras comunidades específicas de pessoas com interesses comuns ou afins.
b) As comunidades específicas são criadas pelos próprios usuários a partir de seus interesses e os demais usuários agregam-se a comunidades de terceiros também conforme os seus interesses.
c) Na rede social, mesmo quando comunidades específicas são criadas para servir os objetivos de instituições, a comunicação rapidamente se torna muitos-para-muitos.
d) A rede social já incorporou a tecnologia do texto, da imagem, do vídeo, do e-mail, da mensagem instantânea, e muito em breve incorporará a tecnologia da fala.
e) Na rede social o texto é usado não só para a comunicação interpessoal (substituindo a fala, enquanto esta não está disponível) como também para a publicação ou republicação de textos, fato que faz das redes sociais não só redes de pessoas, mas, também, verdadeiras mídias sociais.
f) Os textos publicados na rede social em geral são curtos (nunca um livro, nem mesmo um ensaio), objetivos, relevantes e pertinentes ao foco de uma comunidade específica e geram imediata repercussão e discussão.
g) Consequentemente, a rede social é um ambiente extremamente adequado para uma educação personalizada, ativa, interativa, colaborativa, pautada pelos interesses dos participantes, em que, nas palavras de Paulo Freire, ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho, mas todos se educam uns aos outros, em diálogo e comunhão.
É apenas questão de tempo para que o paradigma mude. O processo de sua subversão está em curso. Sócrates, o subversor por natureza, se visse o que está acontecendo, daria pulos de alegria.
*Consultor e Professor de Filosofia (aposentado na UNICAMP e em atuação no UNISAL-Americana), em ambos os casos nas áreas de filosofia política, filosofia da educação e uso da tecnologia nos processos de aprendizagem.
Fonte: liberalspace.net (Publicado em 18/03/2011)
Nenhum comentário:
Postar um comentário