Recuperar a dimensão política da cultura: nosso principal desafio
Quero fazer um retrato dos pontos mais importantes que caracterizam a sociedade brasileira hoje, e daí partir para explorar o tema proposto. Novas Lideranças culturais; setores emergentes e sociedade civil.
O Brasil retomou o seu processo democrático há menos de duas décadas, mais precisamente em 1985, com o que nós chamamos de período de transição, passando a contar com eleições diretas só em 1990. Ou seja, somos uma democracia representativa recente que ainda esbarra em uma cultura arraigada de privilégios de uma pequena parcela da população.
A desigualdade ainda persiste como a principal causa da pobreza e das diversas formas de concentração que o país apresenta – educacional, cultural, econômica, política. As estimativas mais recentes do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas mostram que, se o Brasil tivesse uma desigualdade de renda compatível com a sua renda per capita, segundo os padrões vigentes internacionalmente, teríamos 60% de pobres a menos no país. Ou seja: a maior parte das pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza no Brasil não se encontra nessa situação porque o país é incapaz de gerar renda, mas porque internamente há um excesso de desigualdade em relação ao resto do mundo.
A desigualdade de renda deriva da desigualdade de acesso a um vasto e heterogêneo conjunto de ativos que constituem a riqueza: educação, propriedade, crédito, conhecimento, infra-estrutura etc. Reduzi-la passa, assim, por democratizar o acesso a esses ativos.
Há um consenso, desde o princípio da década de 90, que as estratégias de ampliação do acesso à oferta destes ativos, no Brasil, têm necessariamente que contemplar um vasto e diferenciado conjunto de atores, compartilhado entre diferentes níveis de governo, entidades da sociedade civil e empresas privadas. Este consenso vem com o processo de democratização do país, onde surgem vários novos atores sociais que lutam por um espaço público ampliado e por ver atendidas as suas reivindicações.
E é exatamente no bojo do processo de democratização do país em fins da década de 80 que começam a ser identificadas novas modalidades de participação social e do exercício da cidadania, transgressoras à face política da classe média ou classe trabalhadora sindicalizada percebida até então. Entram em cena os movimentos populares das grandes periferias urbanas, os movimentos agrários, os movimentos de ação afirmativa com forte preponderância comunitária que, na década de 90, se convertem em organizações não-governamentais organizadas a partir dos espaços comunitários.
Eu vou me deter em dois setores culturais específicos e, num primeiro momento, até contraditórios que surgem a partir da segunda metade dos 80: o primeiro, impulsionado pela renovação da sociedade civil, as organizações não-governamentais comunitárias; o segundo, impulsionado pelo Governo, mais precisamente o Ministério da Cultura implantado em 1985, as lideranças empresariais que, utilizando a política de subsídios fiscais adotada pelo Governo, estimulam a produção cultural profissionalizada.
A primeira dessas novas lideranças culturais pode ser identificada, em especial, por meio de novos atores juvenis, movimentos culturais que partem da periferia dos grandes centros urbanos, em pequenas comunidades populares. Lutam pela ampliação de sua representatividade política por meio da expressão de várias formas artísticas e culturais.
A efervescência do diferente começa a nascer em outros, em favelas, nos subúrbios, onde grupos de jovens se organizam para fazer música, dançar, grafitar, produzir fanzines, organizar ações solidárias. Por meio da apropriação de linguagens artístico-culturais – sem compromisso com a profissionalização ou até com a qualidade do que é produzido- em torno da dimensão cultural que estes grupos se organizam, se articulam, expressam as suas questões cotidianas, suas condições de vida, suas inquietações com o país. Alguns desses grupos se profissionalizam, sem perder, contudo, sua dimensão comunitária, passando a intervir no mercado cultural de forma consistente, como é o caso de grupos de hip hop de São Paulo, de mangue beat no Nordeste brasileiro, de reggae na Bahia e no Rio de Janeiro.
Porém, permanecem sem representatividade no campo das políticas públicas, ancorado desde 1985 em um política de incentivos fiscais a empresas sem regulação adequada. São as leis que abatem um percentual do imposto devido ao Tesouro Nacional para estimular o ingresso de recursos privados no campo da cultura. São as leis de mecenato, como a Lei Rouanet, a Lei do Audiovisual que incentiva especialmente a produção de cine, as leis estaduais que incidem sobre impostos provinciais. Este par de leis garantiu, no Brasil, o ingresso direto anual que chega, em 2002, a algo em torno de 100 milhões de dólares, segundo dados do Ministério da Cultura, só com a utilização da Lei Federal de incentivos.
O que ocorre com essa política? Primeiro, ela traz um novo agente à cena política: os departamentos de marketing e comunicação de empresas, em um primeiro momento, e, a partir de 1995, as grandes fundações culturais privadas, muitas atreladas a entidades financeiras, como as instituições bancárias do porte do Santander, Itaú e Bank Boston.
A política de incentivos fiscais no Brasil gera um verdadeiro boom da participação privada no apoio a projetos culturais, com uso direto dos incentivos ou estimuladas pela tendência do mercado investidor. Em 2001 uma pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas aponta 522 fundações privadas com fins públicos, dessas, 10% com atuação apenas na área da cultura. Ocorre que são recursos de origem pública, e toda a sociedade se compromete em abrir mão dessa parcela para incentivar o setor da produção cultural, sem receber em benefícios –a ampliação ao acesso, a melhoria da infra-estrutura de cultura, como salas de exibição de filmes, teatros, bibliotecas, casas de cultura e museus de acesso público - a revisão dos currículos escolares, que permanece precária, para que incluam conteúdos culturais, a necessária inclusão digital etc.
A sociedade, por meio dos governos instituídos, mantém, há 17 anos, a política de subsídio fiscal à cultural, sem que esta alcance expressar os reais avanços apresentados pelos movimentos sócio-culturais, a demanda social e política crescente por melhorias na qualidade de vida como um todo e mais, sem que a dimensão da cultura estabeleça uma relação democrática e de desenvolvimento humano com a população que a sustenta.
A insuficiência do projeto cultural adotado pelo Ministério da Cultura do Brasil com a política de incentivos fiscais
Desde 1985, data de seu nascimento, o Ministério da Cultura adotou, primeiro por meio da Lei Sarney e depois pela Lei Roaunet, o mecanismo do incentivo fiscal a empresas, como principal fonte de financiamento à cultura nacional. A ausência de um projeto estratégico para o setor e de mecanismos reguladores estabelecidos pela legislação ou de outras fontes diferenciadas de financiamento gerou resultados pouco animadores.
Com dados fornecidos pelo próprio MINC, para o ano de 2001, 84% dos recursos captados por projetos culturais, beneficiaram as grandes capitais brasileiras: Rio de Janeiro e São Paulo, onde estão instaladas as maiores empresas nacionais e o poder de mídia dos veículos de comunicação. Os 10 maiores beneficiários dos incentivos proporcionados pela Lei Roaunet foram as atividades e programas das grandes fundações privadas, com origem nos setores bancários, de as multinacionais da área de telecomunicações ou de grandes conglomerados. Sem analisar o mérito e a qualidade das ações empreendidas, é possível afirmar que se financiou no país uma ação regionalmente e setorialmente concentradora, de renda inclusive, que sob a égide do gosto dos homens de marketing e comunicação das empresas, ditaram aquilo que a população brasileira poderia ver financiado ou nas casas de espetáculos dos centros urbanos.
Não se tem registro na história das políticas culturais no país, nem no período da ditadura militar, de tal privilégio às elites nacionais. O resultado é uma série de ações fragmentadas, patrocinadas pelas principais empresas brasileiras, concentradas no eixo Rio-São Paulo, sem expressão regional ou garantia de contrapartida pública, em forma de diversidade, circulação ou de gratuidade, à população brasileira que, ao longo desses últimos 17 anos, abriu mão do seu direito a recursos provenientes de impostos para co-patrocinar um projeto de incentivo ao setor cultural. Institui-se como via unilateral de relação com o Estado a figura do projeto, peça intelectual, capaz de ser desenvolvida por poucos em um país onde 73% da população dita alfabetizada não compreende o que lê(1). Na planilha proposta, o MINC defende com clareza a quem pretende beneficiar com sua política: aqueles capazes de realizarem estratégias de comunicação competentes para atraírem a atenção das empresas e garantirem o retorno de marketing esperado. Nada parecido do que se espera de uma política voltada para o fortalecimento do estado democrático de direito. O projeto é um instrumento autoritário e reducionista, impensável como único mecanismo institucional de diálogo do poder público com sua população, à medida que restringe o acesso dos mais pobres e fragilizados à esfera pública e não realiza o movimento adequado à ação pública que é mapear, diagnosticar, incentivar, e, com isso, ampliar o campo das oportunidades aos tradicionalmente excluídos.
Esse espírito público que deve orientar qualquer escolha dos órgãos competentes do estado, preservando o direito às diferenças e o acesso às fontes estatais em condições de igualdade, é excluído da cartilha adotada pelo MINC em 1995 “cultura é um bom negócio”. Privatizou-se o poder decisório e, com ele, o papel exigido de um Ministério e de uma política pública, reduzindo-se a política cultural a uma ação casuística e de pouco interesse público ou formador.
Hoje, já há um consenso que essas são bases frágeis para se empreender uma mudança de eixo na política cultural brasileira, destacando-se aquelas direcionadas à indução de processos de desenvolvimento.
Algumas pistas do que e como começar
Bernardo Kliksberg, em seu livro, “Falácias e mitos do desenvolvimento social” (2001), dedica todo um capítulo para os temas do capital social e cultural, como áreas importantes de serem retomadas nos processos de desenvolvimento econômico, em destaque da América Latina. Lembrando Enrique Iglesias, presidente do BID, em pronunciamento na Assembléia-Geral da UNESCO, em 1997:
“há múltiplos aspectos na cultura de cada povo que podem favorecer o desenvolvimento econômico e social; é preciso descobri-los, potencializá-los, e apoiar-se neles, e fazer isto com seriedade significa rever a agenda do desenvolvimento de um modo que resulte, posteriormente, mais eficaz, porque tomará em conta potencialidades da realidade que são de sua essência e que, até agora, foram geralmente ignoradas”.
Potencializar o capital social e cultural de um povo é uma tarefa complexa que exige o alargamento das possibilidades das políticas culturais de se integrarem ao esforço de desenvolvimento do país. Isso, naturalmente, implica um esforço de potencializar as áreas de planejamento e gestão de um segmento identificado pela aversão a essas áreas de ação pública, com o investimento sistemático em formação de quadros públicos habilitados a operar com a gestão cultural. Planejamento requer pesquisa, mapeamento, diagnósticos continuados, avaliação e monitoramento, quadros públicos e não-públicos qualificados, desenho de programas estratégicos e menos táticos.
Recuperar a dimensão política da cultura: nosso principal desafio
Além disso, mais do que aspectos técnicos é urgente recuperarmos a dimensão política da cultura, sua importância na reorientação de um processo de desenvolvimento com justiça social, anseio de todos os brasileiros manifesto nas últimas eleições nacionais.
Esta tarefa só será possível se as políticas de cultura formuladas e empreendidas no país se associarem ao esforço de desenvolvimento local de cada município.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar a insuficiência histórica no Brasil do debate que relaciona cultura e retomada da democracia, cultura e direitos sociais e, conseqüentemente, cultura e desenvolvimento. Alheia à boa parte dos avanços políticos que marcaram, nas duas últimas décadas, as discussões em outros setores de atuação pública, a cultura caracterizou-se, nos últimos anos, como uma área de “disputa de privilégios” personificados nos limites reivindicados para a isenção fiscal dos diversos setores artísticos, pelo lobby de aprovação dos tetos permitidos nas comissões de cultura e, naturalmente, pelas verbas publicitárias e de marketing das grandes empresas brasileiras, em especial e paradoxalmente, das estatais. Assim, o campo teórico por excelência das soluções coletivas revela com crueza o traço mais contundente da elite nacional em relação às mazelas do povo: a prevalência dos interesses privados e das soluções imediatistas e restritas a poucos, sobre as necessidades de um corpo social diverso a quem se nega o direito de emancipação cultural e visibilidade pública.
O conjunto de opções estratégicas da agenda pública, estatal ou não, proposta para enfrentar este desafio, que se caracteriza pelos altíssimos níveis de concentração de renda e de ativos educacionais e culturais em segmentos restritos da sociedade, em especial do fenômeno caracterizado pelo economista Ricardo Henriques de naturalização da desigualdade, não pode deixar de considerar a importância central da cultura e das políticas culturais no processo de repaginação da democracia brasileira, principalmente se considerarmos a força do recorte cultural no conjunto de projetos reivindicatórios e dos direitos sociais e, especialmente, comunitários que surgem nas duas últimas décadas na cena nacional.
Em especial, quando se avalia a importância que os projetos culturais passam a ter, a partir da década de 90, na conquista dos espaços públicos e na legitimação dos direitos sociais dos movimentos comunitários e das periferias dos grandes centros urbanos. Maria Virgínia de Freitas, da Ação Educativa, chama a atenção para a importância desse fenômeno:
"Se nos anos 60, eram os jovens de classe média, os estudantes que traziam o novo, nos anos 80 e 90, a efervescência do diferente começa a nascer em outros espaços sociais. Em cidades como São Paulo, é nas periferias que começamos a encontrar uma série de grupos de jovens que se organizam para fazer música, dançar, grafitar, fazer teatro, produzir fanzines, organizar ações solidárias etc. (...) É sobretudo em torno da dimensão cultural que esses grupos vão se articular para encontrar seus iguais e, por meio de diferentes linguagens, expressar suas questões, suas visões de mundo, suas condições de vida, suas revoltas, seus projetos de sociedade. Nós observávamos esta riqueza e nos inquietávamos com sua invisibilidade".(2)
O poder destes movimentos culturais expressos em inúmeros exemplos espalhados pelo país - para ficar em apenas os mais óbvios poderíamos citar o movimento hip hop na periferia de São Paulo, os grupos Afro Reggae (RJ), Pracatum (BA), Edisca (CE), Bagunçaço (MA)- sem dúvida alguma trazem um dado novo para o conjunto das práticas sociais e de ocupação do espaço público que ainda não foram devidamente absorvidas. Em parte, pela ausência de políticas culturais estruturantes que interfiriram decisivamente no desenho das políticas públicas e das ditas agendas sociais no Brasil. Apesar do enorme esforço de redemocratização do país, a cultura não conseguiu alçar-se ao estatuto de política central no processo de compreensão da dinâmica social e, muito menos, no aproveitamento dos dados novos que esta dinâmica trouxe e traz para a efetividade das políticas de desenvolvimento do país e da gestão dos recursos sociais. O traço da invisibilidade continua a operar como uma máscara de incompreensão e de não reconhecimento do lugar central da cultura e da força das práticas locais na reimaginação da democracia brasileira. Democracia que incorpora o respeito às diferenças, o respeito à diversidade e ao pluralismo cultural, as questões de gênero, étnico-raciais, de proteção às minorias culturais.
O aperfeiçoamento do processo democrático brasileiro, inevitablemente, deve caminhar nesta direção, daí a importância de políticas culturais que assegurem o reconhecimento e a visibilidade das diversas práticas culturais originadas no território local, e que as focalizem como capital cultural relevante ao desenvolvimento sustentável do país.
“A proteção dos direitos humanos, em uma sociedade cultural, requer a observância dos direitos culturais, enquanto direitos universalmente aceitos. Não há direitos humanos, nem tampouco democracia, sem a justiça cultural, sem a diversidade e o pluralismo cultural e, nem tampouco, sem que se assegure o direito de existir, o direito à visibilidade, o direito à diferença e à dignidade cultural”.(3)
Em documento orientador sobre políticas de cultura no país, um grupo de especialistas propõe uma série de ações possíveis a curto prazo a serem adotadas ainda por este governo, que podem aproximar a cultura da política de desenvolvimento no Brasil e orientá-la como geradora de bônus econômico e social. Este é o nosso principal desafio coerente com o momento histórico que vivemos no Brasil e em toda a América Latina.
Notas
Marta Porto(*)Jornalista, pós-graduada em Planejamento Estratégico e Sistemas de Informação (PUC-MG), com Mestrado em Ciência da Informação pela UFMG.
Exerceu distintos cargos públicos, privados e em organismos internacionais sempre liderando processos no campo social. Destes destacam-se: a Diretoria de Planejamento e Coordenação Cultural da Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte (1994-1996), a Coordenação do Escritório da UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Cultura e a Ciência – no Estado do Rio de Janeiro (2000-2002) e a Diretoria Corporativa de Responsabilidade Social do Grupo Takano (2003 - 2004). Atualmente é diretora-presidente da (X) Brasil, escritório de comunicação em causas públicas que atua em toda a América Latina liderando programas educativos e sociais na área de comunicação. Desde 2002 é sócia do IETS - Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (RJ), onde coordena o Núcleo de Políticas Culturais.
(1) Dados da última pesquisa divulgada pelo Ministério da Educação, 2003. www.mec.gov.br
(2) FREITAS, M.Virgínia. "A Formação em Redes", texto publicado na coletânea Juventude, Cultura e Cidadania, pág. 113-119. ISER, 2002.
(3) PIOVESAN, Flávia. “Construindo a Democracia: prática cultural, direitos sociais e cidadania”, in Cultura, Política e Direitos, p. 39-45, SESC/UNESCO, 2002.
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