por Evandro Salles*
(O texto discute a arquitetura brasileira atual e sua desconecção com arte e política, a situação das cidades e as implicações históricas dessa desconecção em relação ao chamado de nossa Presidenta para pormos fim à miséria no Brasil. Essa é uma pequena colaboração à discussão do nosso imenso problema, reflexões que gostaria de compartilhar com os amigos.)
Dentre as inúmeras heranças dramaticamente perversas que trazemos do golpe de 64 até os dias de hoje, uma das menos discutidas e de mais profunda influência na vida brasileira é a devastadora ação sofrida na arquitetura e no urbanismo desenvolvidos no país desde então.
O Brasil iniciou os anos 60 com uma das melhores e mais reconhecidas arquiteturas do mundo, que florescia de forma extraordinária havia mais de uma década. Brasília acabara de ser inaugurada trazendo conceitos urbanísticos e artísticos que encantavam o planeta.
Nosso desdobramento modernista estava no auge depois de um desenvolvimento relativamente lento que havia gerado, em arquitetura, a escola carioca, com as figuras exponenciais de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, e a escola paulista, liderada por Vilanova Artigas. Da mesma forma que nas artes plásticas com o concretismo e o neo-concretismo, produzíamos então uma arquitetura e um urbanismo extremamente originais e inovadores. Éramos vanguarda mundial. O Rio de Janeiro, com sua complexa geografia, realizava nesse período sua última grande intervenção urbana bem sucedida, o Parque do Flamengo, obra extraordinária tanto estética como tecnicamente, dirigida por Carlota Macedo Soares e Burle Marx (paisagismo) e que, até hoje, compõe a cidade como uma espinha dorsal. Dez anos antes, com edificações de grande importância de Oscar Niemeyer, São Paulo havia inaugurado o Parque Ibirapuera que também é fundamental para a cidade até hoje, quase sessenta anos depois.
A finalização da obra do Aterro do Flamengo em 1965 marca o início da trajetória descendente da arquitetura nacional. Criada e desenvolvida em grande parte por comunistas, a arquitetura brasileira sempre foi entendida por seus realizadores como parte de um projeto político de transformação do país, de construção de uma identidade nacional, de releitura das tradições culturais mais significativas de seu povo. A ditadura não poderia deixar intocado esse projeto, essa parte do sonho que se materializara em Brasília, vislumbre palpável do realmente novo. Desde o momento em que se endurece e se cristaliza o movimento militar (não por coincidência, o mesmo momento da derrocada do projeto original da Universidade de Brasília que se dá em 1965), inicia-se um colapso progressivo da arquitetura e do urbanismo brasileiros, colapso que tem seu auge nos anos setenta com o crescimento acelerado da economia associado ao total fechamento do regime. Em sintonia com as empresas construtoras que iniciam então seu gigantismo, as universidades e os jovens arquitetos abandonam paulatinamente os preceitos conceituais que até então orientaram a arquitetura brasileira sem entretanto substituí-los por outros, em prol de um suposto tecnicismo que se mostra incapaz, exatamente por sua falta de sustentação conceitual, de estabelecer qualquer nova direção que se possa denominar como linguagem ou escola estruturada. O que se firma e se multiplica velozmente é a mistura aleatória de tendências e materiais perfazendo o mais grosseiro kitsch, que passa a imperar tanto nas construções oficiais como no gosto dos novos ricos. Naturalmente que há exceções, principalmente entre alguns discípulos das escolas citadas que floresceram nos anos 50, como por exemplo os arquitetos Paulo Mendes da Rocha e João Filgueiras Lima, com obras originais e consistentes. Ao mesmo tempo, a arquitetura popular sofre uma ação devastadora da qual jamais se recuperaria, o que transforma as periferias das grandes cidades brasileiras em paisagens deploráveis que são construídas sem qualquer planejamento arquitetônico e urbanístico ou com terríveis projetos de conjuntos habitacionais, incompreensivelmente abjetos. Processa-se então o inchamento descontrolado e sem infra-estrutura dos bairros periféricos, o crescimento galopante das favelas, a ocupação sistemática das encostas e, junto à degradação dos bairros populares, a deformação irreversível de muitos dos bairros nobres e centrais das grandes cidades brasileiras (Copacabana talvez seja o exemplo clássico).
Esta explosão se inicia e se processa na falta de verbas e de regras, na ausência absoluta de planejamento e de leis que organizem e controlem a ação dos especuladores imobiliários, das empresas construtoras e de arquitetos criminosamente desqualificados.
Impera desde então uma espécie de barbárie estética e financeira onde a justificativa é sempre o lucro imediato, o crescimento como valor desassociado da qualidade de vida, do desenvolvimento cultural, da ideia de planejamento, da ideia de futuro social. A ditadura foi plenamente vitoriosa em seu projeto de dissociar no ideário nacional arquitetura e projeto social, urbanismo e política, a arquitetura da arte e da cultura. Como se arquitetura fosse uma disciplina estritamente técnica e não a disciplina essencialmente política da organização do espaço do homem, do espaço de produção e relação social.
Por não existir arquitetura sem política e arte, grande parte da arquitetura que se pratica hoje no Brasil, em todos os níveis, representa ainda o projeto político da ditadura que, cinicamente, apresenta essa disciplina como estritamente técnica e desconectada dos outros aspectos da realidade social.
As consequências dessa lógica aparecem como uma verdadeira tragédia social para o Brasil e se estendem em todas as direções: começam nas temporadas de chuva que matam centenas de pessoas em cidades que cresceram sem qualquer ordenamento ou planejamento, chegando até às desumanas (des)paisagens das cidades dormitórios onde vivem milhões de brasileiros sem direito a cidadania, pois não participam do usufruto da cultura, da beleza e da qualidade de vida produzida em abundância por nossa civilização.
Diante desse quadro e em resposta ao chamado fundamental de nossa presidente em por fim a miséria em nosso país, as questões da arquitetura e do urbanismo tornam-se itens prioritários de reflexão e de transformação social. As universidades podem trabalhar decididamente no sentido de mudar o entendimento do urbanismo e da arquitetura como disciplinas estritamente técnicas. Os governos não podem mais ignorar as consequências gravíssimas de seu alheamento. E a população, a maior interessada, não tem mais como justificar sua alienação. Temos, no Brasil, de perceber que a construção do espaço físico das cidades define a natureza da sociedade que construímos. Como propor um programa habitacional para milhões de brasileiros, sem a proposta paralela de um programa arquitetônico e urbanistico, sem discutir um programa estético, sem pensar um programa cultural, sem tratar de um programa ecológico, sem implicar o político e o social na construção do espaço urbano? Infelizmente a miséria não é destruída por decreto, mas apenas por transformações reais. Buscar não reproduzir o modelo ancorado no capital da especulação imobiliária do gigantesco sistema criado pela ditadura já seria um grande passo para a enorme tarefa que se apresenta. Apesar de enorme, a tarefa terá de ser enfrentada por uma razão muito simples: não temos outra saída, já que o atual sistema é auto-destruidor, como demonstram as catástrofes que sofrem nossas cidades a cada verão. Somos lançados pela realidade à visão de novos caminhos, novas possibilidades, ao mundo que se refaz e se reconstrói. A arte reinventa o mundo.
Um dos grandes arquitetos da atualidade é o japonês Shigero Ban. Possui obras em vários países do mundo e é amplamente reconhecido pela beleza e originalidade de sua arquitetura. Preocupado com a função social da arquitetura, Shigero Ban desenvolveu pesquisas de novos materiais para construções populares após situações de calamidade como o tsuname na Ásia e o terremoto no Haiti, para o qual doou casas feitas com a técnica que inventou. Fundou uma ONG denominada VAN - Voluntary Archictects Network - que propõe desenvolver projetos de arquitetura com fins sociais e métodos construtivos que associem beleza, qualidade e custo baixo de construção.
Seguindo o chamado da presidente Dilma para buscarmos os meios de acabar com a miséria em nosso país, não seria o momento de chamarmos arquitetos como Shigero Ban e os bons arquitetos brasileiros para colaborar dentro do PAC em uma nova concepção de casas e edifícios populares para o Brasil? Não seria maravilhosamente revolucionário se os bairros pobres das nossas cidades fossem projetados pelos maiores arquitetos do mundo? O que nos impede de fazer isso? Não seria o momento do Ministério da Cultura se impor dentro do governo como o espaço de reflexão, inovação e projeto de futuro?
Não seria o momento do Ministério da Cultura assumir a tarefa de re-significar a cultura diante do governo e do país como estruturalmente política e fundamental instrumento para acabar com a miséria?
*Evandro Salles é artista plástico de Brasília, residindo atualmente no Rio de Janeiro.
*Evandro Salles é artista plástico de Brasília, residindo atualmente no Rio de Janeiro.
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