Ainda faltam seis meses (misericórdia)
Camilo Vannuchi
Devagarinho, vou reencontrando amigas e amigos que não via desde o início da pandemia. Em geral, o que rola é um olhar de "ufa", um quase sorriso de "que bom te ver vivo". Ao reencontrá-los, reencontro também a mim mesmo e me dou conta da forma implacável com que os últimos dois ou três anos cravaram sua espora na gente. Nunca estive numa guerra, mas imagino que seja uma sensação parecida. Um misto de "tá foda" com "bola pra frente".
Ficamos mais grisalhos e mais barrigudos. Uma amiga teve gêmeos, outra está grávida, um primo teve um menino. Alguns conhecidos trocaram as crianças de escola, outros mudaram de cidade.
Uns com máscara, outros sem, puxam papo e cumprimentam com genuína alegria -- mas uma alegria calma, terna, comedida. Tem uns que levantam as sobrancelhas, ou apenas uma delas (jamais consegui!), e arriscam uma das perguntas mais delicadas dos últimos quatro anos: "E aí?".
Há também quem chega como se tivéssemos interrompido uma conversa pela metade: "É", pontua, como se fosse minha obrigação saber exatamente ao que se refere.
"Pois é", respondo.
De repente, a letra de "Sinal Fechado" faz todo sentido.
-- Olá, como vai?
-- Eu vou indo, e você, tudo bem?
-- Tudo bem, eu vou indo, correndo, pegar meu lugar no futuro, e você?
-- Tudo bem, eu vou indo em busca de um sono tranquilo, quem sabe?
-- Quanto tempo.
-- Pois é, quanto tempo.
Um lugar no futuro
Na música de Paulinho da Viola, regravada brilhantemente por Chico Buarque, estão lá a pressa (a alma dos nossos negócios), a poeira das ruas, a necessidade de beber alguma coisa rapidamente. O anseio por um lugar no futuro e a busca por um sono tranquilo. Quem sabe?
Hoje, nesses encontros meio rápidos, meio por acaso, meio fortuitos, ainda com menos abraços do que merecemos, repetimos a mesma corrida: por um lugar no futuro, por um sono tranquilo. Busca longa e difícil.
Que lugar é esse que queremos no futuro? O lugar do racismo de Nelson Piquet, da misoginia de Jair Bolsonaro, da aporofobia, da homofobia, da violência sexual perpetrada por operadores do Direito, colunistas, políticos e religiosos? Deus me proteja da maldade de gente boa, cantou Chico César.
Que sono tranquilo é esse que teimamos em sonhar? Quando tantos não dormem em razão da barriga vazia e da calçada fria? Quando tantos não pregam o olho em razão de um terrorismo de Estado 2.0, que nos levou Dom e Bruno, Genivaldo e George Floyd, Marielle e Anderson?
Acho que foi Drummond quem escreveu, há quase um século, que há em nossas consciências um cartaz amarelo que diz: "Neste país é proibido sonhar." E, no entanto, é preciso sonhar. É preciso sonhar como quem constrói, e não como quem espera. E encontrar as pessoas.
-- Quando é que você telefona?
-- Precisamos nos ver por aí.
Um rastilho de esperança
A despeito de ser inverno no hemisfério Sul, por aqui floresce, pela primeira vez após uma noite longa e escura, uma réstia de luz, um rastilho de esperança.
Mais da metade da população já percebe, hoje, a sombra tenebrosa que encobre sobre este país desde 2018, ou um pouco antes, como sete pragas do Egito, quatro bestas do Apocalipse. "Deus tenha misericórdia desta nação", pareceu vaticinar, em 2016, o ex-deputado Eduardo Cunha. Não foi atendido. Preces malditas raramente o são.
A percepção da responsabilidade do atual governante para o colapso do Brasil é um dado auspicioso. Deve-se à nulidade absoluta das políticas públicas propostas, à escalada vertiginosa da fome e do custo de vida (expressão retrô para a rediviva incapacidade de chegar ao fim do mês e pagar os boletos com o que se ganha), à volta da inflação, às evidências cada vez mais acachapantes da corrupção sistêmica que assola este governo, à ignorância escabrosa perante temas como a questão ambiental ou indígena, à preguiça de governar.
A boa notícia é que faltam seis meses, não mais do que isso, para que possamos ter um instante de alívio, um respiro, um mínimo de calma. E voltar, enfim, a construir um lugar no futuro, um sono tranquilo. Quem sabe?
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