Fotos: Antonio Raposo
Guilherme Souza
Produção: CULTUARTE
BOI-DE-REIS “1”:
em TIPOLOGIA DOS REISADOS BRASILEIROS: Estudo Preliminar
Ulisses Passarelli
- Sinonímia: Boi-moreno.
- Distribuição: vale do Alto-Médio Rio São Francisco, em Minas Gerais, das cidades de Pirapora a Manga.
- Personagens: Tamanduá, Boi, Vaqueiro(s)-(Pai Francisco), Catirinas ou Catitas, Mulinha (de Ouro), Onça. Em 2000 foi registrado um Dragão, num dos grupos da cidade de São Francisco.
- Características: as mesmas de outros Bumbas em geral. Instrumental de percussão: surdo, tarol, bumbo. Sai às ruas de 1º a 6 de janeiro. Talvez a maior peculiaridade seja o personagem Tamanduá, lembrando o mamífero típico daquela região do cerrado. Apresenta-se envolto numa carocha, espécie de capa, feita de palha de buriti (palmeira comum na região), que os sertanejos usavam para proteger-se da chuva. O Tamanduá dança querendo abraçar as pessoas - alusão ao mecanismo de defesa deste mimercofagídeo.
- Observações: em São Francisco estão se formando muitos grupos infantis. Há dois de adultos, que guardam rivalidades entre si. São herdeiros de um grupo único e afamado que lá havia. Foi registrado um grupo com uma dupla de Bois dançando.
- Bibliografia:
DINIZ, Domingos. As Manifestações Folclóricas no Alto Médio São Francisco. Simpósio sobre o Folclore do São Francisco / XXVI Encontro Cultural de Laranjeiras (SE), 05 jan. 2001.
MELO, João Naves
BOI-DE-REIS EM SÃO FRANCISCO
"Todo mundo me dizia/ que este boi não saía/ meu boi está na rua/ com prazer e alegria/ saiu, saiu/ saiu daqui agora,/ saiu meu boi moreno/ neste instante, nesta hora".
A alegria invade a rua, despontando com toda volúpia comanda pelas caixas com repique de forte ritmo e o vozerio se levantando aos ares – uns cantando, outros aplaudindo e dezenas de crianças arreliando. É Natal. Os grupos esperam o dia 1º do ano, seguindo a tradição da jornada dos Três Reis Magos, para começar suas andanças, cruzando com os ternos dos foliões de Reis.
Tempos passados o Boi-de-Reis, do jeito da cidade, era mais modesto, menos espalhafatoso e acompanhado por um séqüito quase reduzido aos próprios participantes que levantavam com as precatas a poeira das ruelas da cidade – mais bucólico e romântico, pois se ouvia as caixas, então de cedro ou tamboril, com couro de veado, acompanhadas de violões e violas. A chamada do boi que guardava uma certa distância da casa onde ele era "comprado" já valia o espetáculo. O coral, geralmente de mocinhas e crianças dos bairros pobres da cidade anunciava: "Todo mundo me dizia que este boi não saia..." A letra era uma resposta orgulhosa a quem ousava desafiar que o boi não sairia. Depois da chamada, quando o boi chegava saracoteando e se postava mansamente à frente da casa, uma voz apaixonada ganhava os ares, parecia arrancada do fundo da alma gemendo o primeiro verso:
"Levanta, boi, vem comê capim/ ôi! dona da Casa, tenha dó de mim. Segunda-feira, sábado, domingo choveu, na porta do seu Domingos, foi que meu boi morreu!"
Explodia o coral:
"Ei boi! Levanta meu boi!. Ei! boi, abre a roda meu boi!. Ei boi, arremete o vaqueiro! Ei boi! abra a roda meu boi!"...
e boi ia obedecendo as ordens numa belíssima coreografia, com a chita colorida (o seu couro) se inflando como balão ao sopro do vento nos seus volteios frenéticos, sacudindo como se acometido de violento sezão – avançava no rumo da assistência e se estancava com os chifres em cima do peito da menina espantada; rodopiava e voltava para o meio do terreiro e, depois, arremetia-se para o outro lado da roda, rodando, rodando, até receber a ordem do sossego:
"Amaia meu boi! Amaia, meu boi! Amaia, meu boi!"
era para ele, mansamente, arrear as pernas e descansar um pouco (folga merecida e necessária para o dançarino que, do lado de dentro erguia a pesada armação de varas revestida de panos coloridos e couro, fazendo com que ela tremesse toda, sacudisse violentamente e, ainda exibisse uma terrível coreografia de rodopiar e investir contra vaqueiros e assistentes). Os vaqueiros e as catirinas, na folga, conversavam com os tocadores, outros brincavam com o público, enquanto uma equipe cuidava de reanimar o boi aplicando-lhe injeções e ministrando-lhe doses imensas de elixir. O coral retornava depois do descanso, precedido da mesma voz apaixonada chamando o boi para a lida e tudo se reiniciava até que fosse determinado ao boi:
"Vai saindo, meu boi! Vai saindo, meu boi"
e ele deixava a praça, sacudindo-se todo, para desaparecer na escuridão. Os repiques das caixas redobravam e ficavam mais frenéticos entrando na cadência do "Carneiro", e ecoavam as vozes:
"Olê-lê-lê, Carneiro dê! Olá-lá-lá, Carneiro dá! Quem quisé carneiro manso, manda o vaquero amansá",
e a praça era invadida pelas catirinas que com os vaqueiros repetiam as amarradas dos carneiros no ritmo das caixas e da música. Dançavam e dançavam até serem dispersos pela invasão inesperada do "Bicho Tamanduá" –
"Ei que bicho é aquele que vem acolá? É o bicho Tamanduá”!
E o bicho Tamanduá com sua roupagem de palha, da cabeça aos pés – imitando capa de carocha, vinha rolando no chão, agarrando e arrastando vaqueiros ou catirinas. Era uma dança muito dinâmica, agitada pelas batidas fortes e aceleradas das caixas com o reforço do coral numa cadência onomatopéica:
"que bicho é aquele que vem acolá? É o bicho tamanduá!”.
Estava o bicho a rolar pelo chão com vaqueiros e catirinas, quando adentrava na praça, dançando com graça e leveza, tão mimosa e encantada, a "Mulinha de Ouro" –
"Mulinha de ouro, é ouro só”!...
Depois do seu rápido e belo bailado ela deixava espavorida a praça que era tomada pela onça:
"Oiá a onça no pau! Cachorro nela!. Oiá a onça no pau! Cachorro nela”!...
Começava renhida luta entre a onça e os vaqueiros. Cessavam, enfim, as vozes e as caixas. Os agradecimentos. Meninos curiosos queriam proximidades com o boi e a mulinha – de preferência –, mas se encolhiam quando aproximavam a onça e o bicho tamanduá... O silêncio era de novo quebrado: as caixas voltavam ao repique e o coral retomava o refrão desafiador - "todo mundo me dizia...." – e, se arrastando, o grupo buscava outra praça, deixando saudades.
No dia 6 de janeiro fazia-se uma grande festa na casa do Imperador. Era a matança do boi. Muita dança e muito gole. Noite toda de alegria. Depois, só no começo do outro ano...
Não muito tempo era assim. Hoje, ocorreram muitas mudanças, são muitos grupos. Felizmente a tradição mantém-se firme e no gosto popular, principalmente das crianças (têm, às dezenas, os boizinhos de lata que zoam meses seguidos pelas ruas de seus bairros). Dois grandes ternos fazem a festa no dias atuais: o do Messias, mais tradicional e formoso, que substituiu o de Adão, o mais famoso deles por muitos anos, em São Francisco e outro, o do bairro Sagrada Família. Conquanto guardem muito da coreografia e da música tradicional, eles processaram muitas mudanças no folguedo. O que importa é que, entra ano e sai ano, desponta o boi nas ruas, invade a cidade, ocupa as suas praças e arrasta multidões noite à dentro, todos repetindo com imensa alegria: "Todo mundo me dizia que meu boi não sai..." e o teimoso todo ano sai com prazer e alegria.
"...O boi-de-reis de São Francisco guarda muita semelhança com o bumba-meu-boi do Maranhão, conforme descrição da Câmara Cascudo. A diferença existe é quanto a ocorrência. Enquanto em São Francisco se dá no solstício de Verão, mais propriamente no mês de janeiro, no Maranhão ele ocorre de maio a outubro, com o clímax em junho. No Maranhão, segundo registra a Comissão Maranhense de Folclore, o bumba-meu-boi “é um brinquedo de fé e devoção, uma forma de oração. Ainda hoje o boi é concebido e dançado e cantado em homenagem a santos católicos, mas também a entidades espirituais cultuados nos terreiros de tambor de mina, umbanda, pajelança, entre outros. O catolicismo é uma das concepções religiosas mais presentes na brincadeira. Essa ligação é estabelecida a partir da relação dos boieiros com os santos do período junino e, especialmente, com São João.”As personagens do boi-de-reis de São Francisco origem, também, no bumba-meu-boi do Maranhão que refletem a multiplicidade de símbolos ritos e mitos provenientes da ligação estreita entre o universo das religiões afro-maranhense.
O boi-de-reis de São Francisco não guarda nenhum liame com a religiosidade. Não passa de uma recreação, folguedo folclórico. As músicas entoadas não fazem nenhuma alusão a divindades ou entidades, mas tão-somente contam a história do boi e narram as interferências de várias personagens, como numa ópera bufa."
http://joaonavesdemello.blogspot.com.br/2012/01/boi-de-reis-em-sao-francisco.html
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