
Se você perguntar a um estrangeiro quais são as referências que ele tem do Brasil, a resposta passará por três símbolos: carnaval, futebol e novela. Essa última, há mais de 60 anos faz parte dos hábitos dos brasileiros, sendo considerada o produto de maior audiência e repercussão da televisão, não somente no consumo interno, mas também no mercado internacional.
Paixão avassaladora, os folhetins criados pelo que o produtor Daniel Filho denominou de "circo eletrônico" eram capazes de reunir famílias na frente da tevê até mesmo na noite de Natal — como ocorreu quando a vilã Odete Roitman, de Vale tudo, foi assassinada em 24 de dezembro de 1988 — e abastecer discussões acaloradas em salões de beleza, mesas de bar e, agora, na internet. Com a popularização das redes sociais e do streaming — frutos diretos dos tempos modernos —, porém, o gênero tem passado por transformações que colocam em xeque a sua popularidade.
No passado, títulos como Vale tudo — que retorna, nesta segunda-feira (31/3), 37 anos depois, como remake —, A próxima vítima (1995) e Avenida Brasil (2012) não somente pararam o Brasil nas exibições de seus últimos capítulos, como percorreram o mundo, levando o nome e a cultura do nosso país para territórios diversos e fazendo com que a nossa teledramaturgia se tornasse um modelo a ser seguido.

Cheiro de naftalina
No entanto, após a pandemia, o público passou a rejeitar os novos títulos produzidos pela tevê aberta — em especial pela Globo. Não por acaso, o canal aposta não somente em reprises de obras que fizeram grande sucesso — como Tieta, de 1989, em cartaz no programa Vale a pena ver de novo, que será substituída por A viagem, de 1994 —, mas também em remakes — como Pantanal, da extinta Manchete; e Renascer, da própria Globo.
A primeira trouxe resultados positivos, mas o efeito não foi o mesmo com a segunda. Agora, com o fracasso registrado em Mania de você — trama original que sucedeu Renascer e antecedeu Vale tudo —, a releitura daquela que a opinião especializada chama de "a novela das novelas" divide opiniões: a solução para a crise no gênero está no investimento em histórias já contadas?
Para Mauro Alencar, consultor e doutor em Teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP), raras são as produções que realmente encantaram. "Uma produção audiovisual é o retrato fidedigno de um tempo, de um espaço, de uma construção em conjunto entre autor, diretor, produção e, meu Deus!, dos atores! É a atriz, o ator quem irão nos encantar e nos seduzir para acompanhar a trama e guardá-la em nosso subconsciente", avalia o autor do livro A Hollywood Brasileira — Panorama da telenovela no Brasil (Senac Rio, 176 páginas).
Mas, de acordo com Amauri Soares, diretor-executivo dos Estúdios Globo, da TV Globo e das Afiliadas, recontar histórias faz parte de todo o mundo: "As histórias clássicas são aquelas que resistem ao tempo. Vale tudo é um clássico da telenovela. Em 1988, teve a primeira versão; nós estamos fazendo uma nova versão hoje; e eu imagino que, daqui a 30 anos, uma nova geração de profissionais da televisão fará uma nova versão. Porque faz parte da contação da história".
Autora escolhida para adaptar Vale tudo — uma obra de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères—, Manuela Dias endossa a teoria. "As histórias que não foram recontadas nós nem conhecemos. Os remakes provocam encontros de gerações, de pessoas que viram com pessoas que não viram (a novela), e fazem a gente se repensar como sociedade", defende a criadora da exitosa antologia Justiça e da popular novela Amor de mãe.

Geração TikTok
Mauro Alencar explica que, "em plena Quarta Revolução Industrial, em que reina a cultura da virtualidade real", não dá mais para considerar a telenovela como uma paixão nacional. "Em uma era em que a cultura está fragmentada e diluída (o tal mundo líquido moderno na compreensão precisa do sociólogo Zygmunt Bauman), é praticamente impossível que você tenha um produto cultural como paixão nacional. As paixões é que se pulverizaram também, e cada grupo vai encontrando o que melhor completa os seus desejos conscientes ou não, mas tendo a teledramaturgia como grande catalisadora", ressalta o especialista.
Se na tevê aberta a novela parece saturada, o mesmo não se pode dizer do streaming. Escrita pelo estreante no gênero Raphael Montes, de 34 anos, com supervisão do veterano Silvio de Abreu, 82, a original Beleza fatal uniu inovação e tradição, marcando a entrada triunfal da gigante Max (por meio da parceria Warner Bros. Discovery) no segmento, com resultados bem-sucedidos não apenas na audiência como também na popularidade, — com o frisson pelo último capítulo que não se via desde Avenida Brasil.
Na avaliação da vice-presidente de Conteúdo da WBD no Brasil, Mônica Pimentel, o melodrama — essência de um bom folhetim — tem potencial duradouro, mas deve ser reimaginado para o público atual. "O melodrama, por sua essência, sempre terá potencial para se conectar com o público, devido às suas características fundamentais de emoção e identificação. No entanto, para que esse gênero se mantenha relevante, é crucial adaptá-lo às novas realidades contemporâneas", afirma a executiva, que tem na manga, totalmente produzida, a releitura de Dona Beja, exibida originalmente pela Manchete em 1986, ainda sem data para estrear. Ambos os títulos possuem o mesmo formato: apenas 40 capítulos.
Raphael Montes reforça que, há alguns anos, fala-se que é o fim da novela, mas o brasileiro ainda quer assisti-la — e comentá-la. "Acredito em uma mudança na maneira de fazer e de assistir, no tamanho dos capítulos, e no sentido de que os autores devem olhar para o público atual, já que estamos em uma geração TikTok", argumenta o escritor. "Eu percebo isso pelo que chega a mim por mensagens nas redes sociais e também por dados que me foram passados. Mas é importante frisar que o padrão de audiência do passado não é o mesmo. Não dá mais para comparar com os tempos áureos. Mas, sim, Beleza fatal provou que o brasileiro ainda quer novela", acrescenta.

"O gênero ou formato (a depender da corrente teórica) telenovela vem falhando na falta de sintonia com o consumidor desta Quarta Revolução Industrial. Daí o sucesso extraordinário de Beleza fatal. A produção, porém, seria uma novela para ser exibida às 22h ou 23h e, mesmo assim, com cortes nas cenas mais ousadas sexualmente. Mas acredito que se fosse bem trabalhada para a sua exibição e em uma empresa organizada e com tradição em telenovela, sim, poderia fazer sucesso, talvez não tão alarmante como no streaming", salienta Mauro Alencar.
Essa tendência não é ignorada pela tevê aberta. A Globo, por exemplo, por meio da plataforma Globoplay, que nasceu para disponibilizar seu acervo histórico ao estilo Netflix, também investe no formato para novas novelas — antes mesmo das gigantes internacionais, inclusive, com títulos bem-sucedidos como Verdades secretas II (2021) e Todas as flores (2022). Ainda em 2025, a plataforma lançará Guerreiros do sol, outra produção para o streaming totalmente gravada.

Para mais 100 anos
O diretor-executivo da Globo, Amauri Soares, pontua que a telenovela é um gênero tradicional, que nasceu no rádio, mas tem todas as características do conteúdo digital do presente e do futuro. "É um gênero que se reinventou e que se mostra muito moderno. O nosso dever é encontrar as histórias adequadas para o dia de hoje, que caibam nesse formato, mas eu não tenho dúvida que (o gênero) está aí para mais 100 anos", aposta.
Rosane Svartman, que escreveu o livro A telenovela e o futuro da televisão brasileira (Cobogó, 248 páginas), como desdobramento de uma tese de doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF), também defende a longevidade do gênero. "Não há crise, mas oportunidade. Tanto que o melodrama migrou para o streaming com muito êxito. É recente e transformador", conclui a autora de Vai na fé (2023), considerado o último grande sucesso do gênero na tevê aberta, e de Dona de mim, aposta da Globo para o horário das 19h a partir de abril.
Entrevista | Mauro Alencar
Consultor e doutor em Teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de A Hollywood Brasileira — Panorama da telenovela no Brasil (Senac Rio, 176 páginas) e da biografia Susana Vieira: Senhora do meu destino
Para começar, a telenovela ainda pode ser considerada uma paixão nacional?
Do ponto de vista da formação social do Brasil, incluindo a criação de uma identidade nacional e do inconsciente coletivo, sim. O que quero dizer com isso: a telenovela faz parte do constructo nacional como o carnaval e o futebol (independentemente dos resultados, por exemplo, da seleção brasileira). Tomo, portanto, por base, os conceitos de antropologia cultural e sociologia. Particularmente, a primeira ciência, pois por meio da telenovela compreendemos como se formou a cultura do Brasil e da América Latina como um todo: os hábitos, costumes, valores, religião, culinária e a História de maneira mais ampla. Não por acaso, se a Europa, mais especificamente, a Inglaterra respira teatro, o Brasil respira telenovela, pois a telenovela é uma invenção da América Latina. Entretanto, em termos de consumo dentro da indústria cultural e do entretenimento, não mais, pelo fato de que estamos em plena era da Quarta Revolução Industrial onde reina a cultura da virtualidade real. Desse modo, ao mesmo tempo em que assistimos cada vez mais a integração da comunicação eletrônica, o avanço das redes sociais, das comunidades virtuais, do mundo globalizado, enfim, observamos o fim da audiência de massa. E era essa audiência que fazia da telenovela uma “paixão nacional”. Lembremos que hoje o mundo da teledramaturgia (novelas e séries) está ao nosso alcance, com qualidade e variedade. Também não existe mais a idolatria aos atores como se via em décadas passadas, nem mesmo acompanhamos a trajetória e o estilo dos autores de telenovela. Relação arte – plateia/ público/ audiência que vinha dos tempos da radionovela nas décadas de 1940 e 1950 e que migraram com muito mais força para a televisão. Do mesmo modo, os diretores também não são mais endeusados como víamos em outros tempos. Isso não quer dizer que a telenovela deixou de ser importante para a economia criativa. Muito pelo contrário, ela segue como um dos principais produtos culturais, mesmo que não tenha a relevância psicossocial de outrora. Haja vista o sucesso explosivo de Beleza fatal no streaming. Uma grata e necessária surpresa! Sintetizando: numa era onde a cultura está fragmentada e diluída (o tal mundo líquido moderno na compreensão precisa do sociólogo Zygmunt Bauman), é praticamente impossível que você tenha um produto cultural como “paixão nacional”, ainda que tenha uma abrangência extraordinária tanto na televisão aberta quanto em plataformas digitais. As paixões é que se pulverizaram também e cada grupo vai encontrando o que melhor completa os seus desejos conscientes ou não, mas tendo a teledramaturgia como grande catalisadora.
Ao longo dos últimos 10 anos, poucas telenovelas mantiveram o sucesso que o gênero costumava manter. Após Avenida Brasil (2012), algumas produções — como Amor à vida (2013), Império (2014), Totalmente demais (2015), Eta mundo bom (2016) e A força do querer (2017) — se destacaram na década passada, mas, de 2020 para cá, tivemos uma grande queda, com apenas Pantanal (2022) — um remake —, reavivando o horário das 21h após a pandemia, e uma às 19h, Vai na fé (2023), que, até então, é considerada a melhor obra da década. Na sua opinião, onde é que o gênero telenovela vem falhando tanto?
Você acaba de confirmar o que eu respondi acima! E a última grande união do público com a telenovela foi em 2012, com Avenida Brasil. O gênero ou formato (a depender da corrente teórica) telenovela vem falhando na falta de sintonia com o consumidor desta Quarta Revolução Industrial. Daí o sucesso extraordinário da produtora Coração da Selva com Beleza fatal exibida pela Max.
Beleza fatal chegou, como uma grande aposta da Max, mostrando que ainda é possível fazer um novelão clássico. Mas, será que todo esse sucesso seria possível na tevê aberta, se ela fosse adaptada para o horário das 21h?
Certamente, Beleza fatal seria uma novela para ser exibida às 22h ou 23he, mesmo assim, com cortes nas cenas mais ousadas sexualmente. Mas acredito que se fosse bem trabalhada para a sua exibição e numa empresa organizada e com tradição em telenovela, sim, poderia fazer sucesso, talveznão tão alarmante como no streaming. De qualquer maneira, acompanho com muito entusiasmo a interação de nossas novelas (e, até o momento, Beleza fatal está em primeiríssimo lugar) com as redes sociais. Vivemos o que já havia sido preconizado por Jesús Martín Barbero, o saudoso mestre colombiano sobre os meios e suas mediações. Observo que Beleza fatal é o produto mais bem acabado de nossa nova dinâmica cultural.
Você acredita que o streaming, especialmente o Globoplay, que traz praticamente todas as novelas já produzidas pela Globo a um clique, prejudicou o que se produz para o gênero atualmente?
O que observo, escuto e leio é que essa estratégia (quem iria saber?) abriu um abismo entre passado e presente, pois as décadas de 1970, 80 e 90 foram a “época de ouro da telenovela brasileira”.
Qual é a sua opinião sobre os remakes? Essa adaptação de Vale tudo é um tiro no pé ou um grande acerto no alvo?
Particularmente não aprecio remakes de telenovela ou filmes pelos mais diversos motivos. Raras são as produções que realmente encantaram como Mulheres de areia, A viagem, A gata comeu, Pantanal (Globo) e Éramos seis (SBT). Uma produção audiovisual é o retrato fidedigno de um tempo, de um espaço, de uma construção em conjunto entre autor, diretor, produção e, meu Deus!, dos atores! É a atriz, o ator quem irá nos encantar e nos seduzir para acompanhar a trama e guardá-la em nosso subconsciente.
Sobre Vale tudo, como diria minha primeira mestra Helena Silveira (pioneira jornalista e cronista da TV), “ainda é cedo para deitar cartas na mesa”. Aguardemos a novela começar...
O que o público noveleiro 40+, de classe média, espera das novelas atuais? E como fazer para resgatar esse público?
Acredito que devemos buscar histórias, temas, personagens que dialoguem com a faixa etária muito bem observada por você. E novelas onde a produção fique atenta à época em que vivemos — tanto na forma quanto no conteúdo — aos desejos do público consumidor. Você tem o produto, a mídia para exibi-lo e público–alvo. Compreender e procurar preencher esse processo da melhor maneira possível é o dever de executivos e produtores.
E como fisgar a turma mais jovem, acostumada com a instantaneidade das mídias digitais? Beleza fatal fez isso, mas outra poderá conseguir, mesmo no streaming?
Beleza fatal já é um ícone dos novos tempos. O importante é que, dentro do mesmo processo de produção, não fique um hiato muito longo entre uma produção e outra e que procure se encontrar temas que interessem a esse grupo mais jovem dentro da dinâmica existencial em que eles vivem. O desafio dessa nossa Era é grande, mas fascinante.